Acessibilidade / Reportar erro

Quimeras, Centauros e a Questão da Consciência Animal: Comentário a Respeito do Artigo de César Ades

Resumos

Credite-se ao Professor Ades por sua decisão de abordar a questão da consciência: quanto menos se discutir esse assunto mais ingênuas serão nossas idéias sobre ele. Ades mostra que atribuição de propriedades ao animal tem de obedecer a critérios verificáveis. Sem isso, o animal da Ciência não será diferente dos híbridos dos mitos. Contudo, esta nota sugere que, ao acompanhar o Autor em seus hábeis esforços para desatar alguns dos nós do problema, o leitor talvez se sinta envolvido por novos fios viscosos, em especial pela noção de que haveria um espécie de consciência exclusivamente humana.


It is to Professor Ades’ credit that he took the pains to address the question of consciousness: the less it is discussed the more naive will be our notions about it. Ades shows that there must be objective criteria to attribute properties to animals. Otherwise, the animal of Science will not be different from mythological hybrids. This note suggests, however, that as the reader follows the Author’s skilful efforts to undo some of the knots of the problem, he may find himself entangled amidst new viscous threads, particulary the idea that there is a kind of consciousness which is unique to man


QUIMERAS, CENTAUROS E A QUESTÃO DA CONSCIÊNCIA ANIMAL: COMENTÁRIO A RESPEITO DO ARTIGO DE CÉSAR ADES

Fernando José Leite Ribeiro

Departamento de Psicologia Experimental (USP)

Credite-se ao Professor Ades por sua decisão de abordar a questão da consciência: quanto menos se discutir esse assunto mais ingênuas serão nossas idéias sobre ele. Ades mostra que atribuição de propriedades ao animal tem de obedecer a critérios verificáveis. Sem isso, o animal da Ciência não será diferente dos híbridos dos mitos. Contudo, esta nota sugere que, ao acompanhar o Autor em seus hábeis esforços para desatar alguns dos nós do problema, o leitor talvez se sinta envolvido por novos fios viscosos, em especial pela noção de que haveria um espécie de consciência exclusivamente humana.

Com asas, como as aves, sonar, como os golfinhos, repouso de bicho-preguiça, o morcego impõe uma charada antiga ao moderno Édipo. Consciência, como os humanos? E ele, menos esperto que o antigo, mas igualmente consciente de seu destino, desespera-se. Com a urgência do medo, abdica de seus limitados meios e, como ultima ratio, tenta a intuição, a identificação, a empatia; tenta fazer-se morcego. Porém, como não pode deixar de ser homem, dá início a uma estranha metamorfose: o animal que se vai formando é um monstro ainda mais enigmático que os dois contendores originais. Não se pode esperar mais desse conúbio que o Drácula da lenda. Livra-se da morte, mas perde a vida. Não poderá mais ver com clareza, nem terá sua própria imagem refletida.

O antropomorfismo, ingênuo ou crítico, não pode, por si mesmo, revelar características psicológicas dos animais. A proposição "O homem mastiga a carne antes de engolir; portanto, o sapo também age assim." é necessariamente falsa. Sua falsidade não decorre de sabermos alguma coisa sobre os sapos mas por causa do "portanto". A existência de um comportamento numa espécie não implica sua existência em outra. Quando, na prática, encontramos um comportamento numa espécie e o imaginamos presente também em alguma outra, o percurso lógico, para ser aceitável, tem de apoiar-se em outras semelhanças entre as duas espécies. A aceitação de "existe em A, portanto existe em B" levaria à conclusão de que todas as espécies são iguais. Examinemos esta outra sequência: "A característica ‘h’ existe em A que tem também as características a, b, c, d, e, f, g. B tem as características a, b, ... g. As características "a, b, ... g" não podem existir sem ‘h’. Portanto B tem ‘h’." É claro a conclusão é verdadeira; mas é claro também que basta a presença de "a ... g" em B para que se possa afirmar a presença de "h" em B. A presença de "h" em A é dispensável. O que importa é a necessidade lógica das relações entre as características.

Por essa razão, o núcleo do artigo de Ades sobre a consciência animal é o item "Comportamentos / critérios" das páginas 14 a 20. Ades arrola as características humanas que têm sido apontadas como indicadores de consciência: engenhosidade, versatilidade, memória, comunicação, aproveitamento da experiência, raciocínio, representação mental, inteligência. Seriam essas as características (humanas) que indicariam consciência se fossem encontradas nos animais. Dentre muitos exemplos possíveis, Ades faz uma bela escolha de casos de comportamentos de animais em cuja interpretação é muito difícil evitar o uso de cada um daqueles termos. Não incorre na ingenuidade de tentar denunciar como imprópria a interpretação cognitivista. Sem entrar no mérito da questão cognitiva - e não é mesmo o caso neste contexto - Ades simplesmente nega que a demonstração de habilidades cognitivas signifique consciência. Afirma que é desnecessária, do ponto de vista epistemológico, a inclusão da consciência nos modelos explicativos dos comportamentos cujas características pareçam requerer conceitos cognitivos. Cognição não implica consciência. O argumento consiste em negar que os indicadores sejam de fato indicadores. Não basta pensar, resolver problemas, criar e imaginar para receber o atestado de consciência.

Então, é só isso e o assunto se encerra? Parece que não, pois resta o problema de renunciar ou não à consciência humana e Ades abre seu artigo aceitando-a sem hesitação. Proclama não só a sua própria consciência como também a minha, a do leitor e a de quem mais tiver uma cabeça humana. Rejeita-a na quimera mas encontra-a no centauro e na esfinge.O saudável ceticismo com que repudia as precipitadas sugestões dos que querem ver consciência ao primeiro sinal de plasticidade e criatividade bate em retirada diante de sua própria introspecção e do peso da tradição filosófica.

Permita-me o leitor uma pequena digressão. Galileu revolucionou a mais estável das convicções, que se apoiava na mais radiante das evidências. Contrariou a tradição, a unanimidade do senso-comum e seus próprios sentidos porque confiou no exame racional de seu objeto. Na Psicologia temos alguns exemplos desse tipo de audácia. Em seus momentos mais extremos, o behaviorismo promoveu uma faxina conceitual completa, expulsando todo e qualquer termo ou idéia que tivesse vínculo com a tradição. O problema não foi a falta de coragem mas sim o resultado: a casa ficou vazia. Asséptica, mas árida. Por causa dessa e de outras frustrações, o psicólogo contemporâneo cerca-se de prudência. Negar consciência ao ser humano? Ades recua. Oferece-nos logo, não apenas uma, mas duas consciências. A primeira, mais simples, o "dar-se conta de", parece um sinônimo de percepção. Basta perceber para diplomar-se consciente. Mas, com isso, ele a concederia aos animais? Imediatamente. Suas argiopes teriam esse primeiro tipo de consciência. Aqui, o que Ades rejeita é apenas a utilidade do conceito de consciência na construção dos modelos teóricos. A consciência será uma nota de rodapé, um post-script. Estará lá sem função nem causa, algo como o "h" da ortografia da palavra hoje.

Já o segundo tipo é apenas humano. É a consciência da consciência, o perceber que percebo. O critério? O eu e a linguagem, um critério duplo. Implicitamente, Ades nega que algum animal disponha de ambos. Não faz o exame dessa negação. É uma pena que a deixe implícita e que não a discuta em seus desdobramentos. É certo que seu tema é a consciência dos animais e não a discussão da consciência humana. Não obstante, parece-me insensato deixar as coisas assim. Ao dotar o homem de consciência e negá-la aos animais, cria-se uma separação radical, uma descontinuidade. Na História das Idéias, a questão da continuidade não é um assunto trivial. Está carregada de valor e paixão, e repercute por todo o ambiente cultural.

Por essa razão e também pela própria lógica interna do artigo, são relevantes as seguintes questões: será realmente desnecessário ou inútil o conceito de eu na construção de modelos psicológicos das espécies animais? O eu humano é uma aquisição exclusivamente cultural ou tem base biológica? Se for possível levar um animal a indicar, sem ambigüidade, que algo aconteceu a ele e não a um outro indivíduo, não estaremos diante dos requisitos da consciência humana? Pelo critério de Ades, o leitor terá consciência se for capaz de dizer coisas como "Ouvi uma sereia", desde que esteja claro que "ouvi" signifique "foi algo que aconteceu comigo" "não foi você quem ouviu, fui eu". Não estará demonstrada a consciência (do 2º grau) se for possível interpretar suas palavras como, apenas, "uma sereia cantou". Teremos a linguagem mas não o eu. É claro que Ades não dirá que a consciência só existe nessas ocasiões em que o relato convincente a demonstra. O relato é apenas uma prova da capacidade de "saber que sabe". Correndo o risco de me transformar em lobisomem, tento imaginar um lobo que mordesse sua própria língua do mesmo modo que isso acontece às vezes com os humanos. O fato de ele ser incapaz de dizer "Mordi minha língua" prova que seus recursos de comunicação não têm competência para oferecer essa informação. Não prova que ele não tenha sentido a dor (consciência de 1º grau). Imaginar que ele a tenha sentido não leva nenhuma dificuldade à hipótese de Ades. O que talvez complique as coisas será imaginar que o lobo possa ter uma representação mental de que foi ele o autor de sua própria dor. Ades supõe que há uma diferença entre as duas representações. A minha, humana, será consciente (2º grau), a outra não. A diferença, nos seus termos, terá de estar ligada à noção de eu e de comunicabilidade" com palavras". Esse requisito "com palavras" precisa ser examinado em toda sua extensão, pois ele, por si só, sem o eu, quase elimina a possibilidade da consciência animal.

Acredito que aquilo que na experiência introspectiva de muitas pessoas constitui o problema da consciência é algo pré-linguístico, por assim dizer. É algo relacionado a coisas como sensação, cognição, percepção, atenção, memória, pensamento, sentimento, vida mental e imaginação. Não me parece que elas diriam "Sim, estou consciente (ou tenho consciência) porque sei falar ou porque saberia contar o que se passa em minha mente". É claro que elas podem estar iludidas. É notória nossa incapacidade de perceber a importância do ambiente cultural e da formação de conceitos em nosso modo de ver o mundo e isso decerto vale também para nosso modo de observar nossa própria mente. De qualquer forma, no entanto, a hipótese de Ades tem de enfrentar aquele contraste com a subjetividade.

Ades lida com a questão da consciência animal dentro de um panorama cognitivo. Uma alternativa seria o ponto-de-vista afetivo. Talvez o problema não se altere e dê tudo na mesma, porém, parece-me que na arena afetiva o assunto fica mais contundente. Qualquer pessoa que tenha experiência com mamíferos e aves dirá que várias de suas sensações são iguais ou muito semelhantes às dos humanos. Prazer, dor, raiva e medo são exemplos suficientes. Mais do que o "saber que sabe", o "saber que sente" parece possível aos animais.

À consciência de 1º grau Ades não atribui nenhum papel. E à de 2º grau? Será também como o "h" de hoje ou será o "h" de amanhã, funcional, modificador daquilo com que estiver em contato? Ao tentar encontrar sua função não estaremos buscando a função dos processos de atenção? Qual é a diferença entre prestar atenção e estar consciente? Não teremos aí, no estudo da atenção, uma sugestão de método? Pouco a pouco, note-se, os neurofisiologistas entram na discussão da consciência com seus métodos ainda canhestros mas melhores que nada e, quem sabe, eficientes amanhã.

E isto nos leva, portanto, à questão do método. Nenhuma palavra sobre método. É natural. Quem se põe a discutir a consciência sabe que está entrando num ambiente de conjecturas. Comparado ao laboratório, o cenário é desalentador. Não é só de métodos que se sente falta. As próprias palavras parecem faltar e a sintaxe é desconcertante, precisa ser inventada. A consciência é sempre transitiva? Pensamento consciente ou consciência do pensamento? E assim por diante. É claro que as limitações são graves, mas é bem melhor fazer o que fez Ades do que afastar o assunto como intratável ou, ainda pior, desprezá-lo em nome de uma assepsia pretensiosa. Quanto menos se discutir a consciência, mais ingênuas serão nossas noções sobre ela.

RIBEIRO, F.J.L. Chimeras, Centaurs and Animal Consciousness: A Note on Ades’ Paper. Psicologia USP, São Paulo, v.8, n.2, p.159-164, 1997.

Abstract: It is to Professor Ades’ credit that he took the pains to address the question of consciousness: the less it is discussed the more naive will be our notions about it. Ades shows that there must be objective criteria to attribute properties to animals. Otherwise, the animal of Science will not be different from mythological hybrids. This note suggests, however, that as the reader follows the Author’s skilful efforts to undo some of the knots of the problem, he may find himself entangled amidst new viscous threads, particulary the idea that there is a kind of consciousness which is unique to man.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 1998
  • Data do Fascículo
    1997
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revpsico@usp.br