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Identidade de gênero masculina em civis e militares

Male gender identity in civil and military men

Resumos

O presente estudo teve como objetivo verificar se haveriam diferenças significativas entre o número de sujeitos masculinos e o número de sujeitos femininos, andróginos e indiferenciados, dentro de um grupo de homens militares e de um grupo de homens civis. Além disso, procurou-se investigar se o número de militares masculinos seria significativamente maior que o número de civis masculinos. A amostra compôs-se de 83 militares e 82 civis, que responderam ao Questionário de Atributos Pessoais. Entre os militares, a proporção de sujeitos masculinos não diferiu significativamente da proporção de sujeitos andróginos e indiferenciados, porém, na amostra de civis, a proporção de sujeitos andróginos e indiferenciados foi significativamente maior que a de sujeitos masculinos. Concluiu-se que os homens civis estão redefinindo seus valores, crenças e expectativas relacionadas à masculinidade (O’Neil, 1992). Entretanto, os homens militares parecem estar vivenciando conflitos, decorrentes do confronto entre os valores masculinos que caracterizam a doutrina militar e o processo de liberação masculina.

masculinidade; papel sexual masculino; identidade de gênero


This paper investigated if there was a significant difference in the number of masculine subjects and feminine, androgynous and undifferentiated subjects, in a sample of military and in a sample of civil men. Also, differences in the frequency of masculine military men and masculine civil men were investigated. The sample was composed by 83 military men and 82 civil men. The participants answered the Personal Attributes Questionnaire. The results showed no significant difference between the proportion of male subjects and androgynous or undifferentiated subjects, in the military men sample, but the proportion of androgynous and undifferentiated subjects was significantly higher than the proportion of masculine subjects, in civil men sample. It was concluded that civil men are redefining their values, beliefs and personal expectancies about masculinity (O’Neil, 1992). Therefore, military men can be experiencing conflicts due to the confrontation between the male values which characterize military doctrine and the male liberation process.

masculinity; male gender role; gender identity


Maria Cristina Ferreira1

Universidade Gama Filho

Resumo

O presente estudo teve como objetivo verificar se haveriam diferenças significativas entre o número de sujeitos masculinos e o número de sujeitos femininos, andróginos e indiferenciados, dentro de um grupo de homens militares e de um grupo de homens civis. Além disso, procurou-se investigar se o número de militares masculinos seria significativamente maior que o número de civis masculinos. A amostra compôs-se de 83 militares e 82 civis, que responderam ao Questionário de Atributos Pessoais. Entre os militares, a proporção de sujeitos masculinos não diferiu significativamente da proporção de sujeitos andróginos e indiferenciados, porém, na amostra de civis, a proporção de sujeitos andróginos e indiferenciados foi significativamente maior que a de sujeitos masculinos. Concluiu-se que os homens civis estão redefinindo seus valores, crenças e expectativas relacionadas à masculinidade (O’Neil, 1992). Entretanto, os homens militares parecem estar vivenciando conflitos, decorrentes do confronto entre os valores masculinos que caracterizam a doutrina militar e o processo de liberação masculina.

Palavras-chave: masculinidade; papel sexual masculino; identidade de gênero.

Male gender identity in civil and military men

Abstract

This paper investigated if there was a significant difference in the number of masculine subjects and feminine, androgynous and undifferentiated subjects, in a sample of military and in a sample of civil men. Also, differences in the frequency of masculine military men and masculine civil men were investigated. The sample was composed by 83 military men and 82 civil men. The participants answered the Personal Attributes Questionnaire. The results showed no significant difference between the proportion of male subjects and androgynous or undifferentiated subjects, in the military men sample, but the proportion of androgynous and undifferentiated subjects was significantly higher than the proportion of masculine subjects, in civil men sample. It was concluded that civil men are redefining their values, beliefs and personal expectancies about masculinity (O’Neil, 1992). Therefore, military men can be experiencing conflicts due to the confrontation between the male values which characterize military doctrine and the male liberation process.

Key-words: masculinity; male gender role; gender identity.

Durante muito tempo, o sexo biológico serviu como base para estudos sobre diferenças individuais, que procuravam tornar científica a crença de que homens e mulheres se diferenciavam não apenas nos aspectos biológicos, mas também em dimensões psicológicas. As pesquisas orientadas por essa concepção consideravam a masculinidade e a feminilidade como pólos de uma única variável psicológica contínua, em que os indivíduos altamente masculinos se situavam em uma das extremidades e os altamente femininos na outra (D'Amorim, 1989).

Ao surgir na década de sessenta, o movimento feminista dirigiu a atenção para a posição social das mulheres, e passou a questionar o valor funcional do sistema de papéis sexuais vigente, assim como o ideal social que defendia a adequação de alto índice de características masculinas no homem e alto índice de características femininas na mulher. Tal movimento fez com que o termo sexo fosse substituído pelo termo gênero, na medida em que o termo sexo pode ser considerado como uma referência para as categorias de masculino e feminino, sob o aspecto biológico, enquanto o termo gênero refere-se à soma das características psicossociais estereotipicamente consideradas como apropriadas aos membros de cada grupo sexual (Bem, 1975; D'Amorim, 1989; Deaux, 1984; 1985; Katz, 1986; Lenney, 1991).

O movimento feminista ocasionou, também, uma reorientação nas pesquisas sobre diferenças individuais, que passaram a considerar a masculinidade e a feminilidade como duas dimensões independentes, que se encontram presentes ao mesmo tempo no indivíduo, em maior ou menor grau (Bem, 1974; Block, 1973; Carlson, 1971; Spence, Helmreich & Stapp, 1975). As investigações sobre essas dimensões têm sido conduzidas através do constructo denominado identidade de gênero, que pode ser conceituado como um senso de masculinidade ou feminilidade, uma aceitação de um gênero que, em geral, se complementa com a consciência de um sexo biológico (Katz, 1986), e se incorpora ao auto-conceito do indivíduo (Spence, 1985). A identidade de gênero refere-se, portanto, à auto-percepção de atributos instrumentais, orientados para a realização de metas, ou expressivos, orientados para o contato interpessoal, que definem os papéis culturalmente reconhecidos, respectivamente, como típicos do gênero masculino ou feminino (Spence & Helmreich, 1978).

As explicações sobre os processos responsáveis pela identidade de gênero têm sido desenvolvidas a partir de três principais abordagens: a teoria psicanalítica, a teoria da aprendizagem social e a teoria do desenvolvimento cognitivo. Para a teoria psicanalítica (Freud, 1925/1976), a estruturação da vida psíquica ocorre através das identificações que a criança desenvolve em seus primeiros anos de vida, especialmente com o pai e a mãe. No que diz respeito à aquisição dos papéis masculino e feminino, considera-se o complexo de Édipo como a fase crucial desse processo, na medida em que, através dele, a criança forma um forte vínculo positivo (identificação) com seu progenitor do sexo oposto, desenvolvendo sentimentos hostis em relação ao progenitor do mesmo sexo. O conflito inerente ao complexo de Édipo tem início por volta do terceiro ano de vida e, geralmente, é resolvido aos seis anos, quando a criança renuncia aos desejos em relação ao progenitor do sexo oposto, passando a se identificar e internalizar as características, atitudes e comportamentos do progenitor do mesmo sexo. O modo pelo qual se dá a resolução do conflito edipiano irá determinar a aquisição dos papéis masculino e feminino, bem como as diferenças de personalidade entre homens e mulheres.

Enquanto a teoria psicanalítica acentua o papel das motivações internas na aquisição da identidade de gênero, a teoria da aprendizagem social (Mischel, 1966) se detém no papel que os fatores ambientais desempenham nesse processo. Postula-se, portanto, que a criança aprende os comportamentos associados aos papéis sexuais através da observação e imitação dos modelos reais ou simbólicos de seu próprio gênero, bem como através das recompensas que recebe pela emissão de comportamentos adequados ao mesmo, e das punições decorrentes dos comportamentos inadequados. Neste sentido, ambos os pais são propostos como modelos potenciais e fontes de reforçamento iniciais para a criança.

A teoria do desenvolvimento cognitivo (Kohlberg, 1966) enfatiza a importância dos mecanismos cognitivos e dos estágios de desenvolvimento como mediadores da formação da identidade de gênero. Desse modo, ao contrário da teoria da aprendizagem social, que realça o papel desempenhado pelos adultos, a teoria do desenvolvimento cognitivo acentua o papel ativo da criança nesse processo. Assim é que, segundo Kohlberg (1966), por volta dos três anos, a criança atinge um primeiro estágio de desenvolvimento denominado de identidade básica de gênero, no qual ela é capaz de rotular a si própria e aos outros, de modo consistente, como menina ou menino. Tal classificação se baseia em características físicas, e desse modo, quando elas se modificam, as identificações de gênero também se modificam. Por volta dos quatro anos, a criança atinge o estágio de estabilidade do gênero, tornando-se capaz de compreender que o gênero se mantém estável ao longo do tempo e passando a acreditar que os meninos e meninas se manterão com essa identidade pelo resto de suas vidas. Com cerca de seis ou sete anos, a criança atinge o estágio de consistência do gênero, no qual obtém a compreensão de que o gênero é constante através do tempo e das situações, e que, portanto, não se modifica, a despeito da aparência física e da participação em atividades tipificadas como masculinas ou femininas. Ao atingir esse estágio, a criança é capaz de entender que o gênero se constitui em um aspecto imutável do auto-conceito e de se identificar com o seu próprio sexo, demonstrando preferências sistemáticas e coerentes com essa identidade.

Modelos teóricos mais recentes (Bem, 1981; Spence, 1984,1985) incorporaram pressupostos das teorias da aprendizagem social e do desenvolvimento cognitivo, ao destacarem tanto o papel do meio ambiente como o dos mecanismos cognitivos, para explicar a aquisição da identidade de gênero. Neste sentido, Bem (1981) formulou a teoria do esquema de gênero. Um esquema é definido como uma estrutura cognitiva constituída por uma rede de associações que organiza e orienta a percepção da realidade de forma seletiva, capacitando o indivíduo a processar informações. De acordo com a autora, durante o curso do desenvolvimento, a criança aprende a distinguir os atributos, atitudes e comportamentos que a sociedade vincula ao seu sexo biológico, formando um esquema de gênero, que contém as associações prescritas como apropriadas a seu próprio sexo. Tal esquema é o responsável pelo modo através do qual as novas informações sobre o gênero são processadas, fazendo com que o indivíduo avalie e procure adequar suas preferências e atitudes a esse auto-esquema, que é congruente com uma definição cultural de masculinidade e feminilidade.

Para Spence (1984, 1985), a aquisição do conjunto de características e comportamentos associados ao gênero se constitui em um fenômeno complexo, que sofre diversas influências, entre as quais se incluem as expectativas sociais sobre o papel sexual, os valores, crenças e práticas educacionais dos pais, e as habilidades e capacidades cognitivas da criança. A autora salienta, entretanto, que um dos fatores essenciais na formação da identidade de gênero é a busca da aprovação social. Portanto, a criança tende a organizar seu auto-conceito escolhendo, entre as muitas dimensões de personalidade possíveis, aquelas definidas como próprias a seu sexo, procurando evitar as demais, num esforço para obter a aprovação das pessoas que lhe são significativas. Desse modo, ela passa a se identificar com pessoas de seu próprio sexo, adquirindo atributos e comportamentos que a sociedade considera como adequados ao seu gênero. Uma vez estabelecida, essa identidade exerce uma forte e contínua influência, fazendo com que sejam buscados, cada vez mais, os sinais visíveis de masculinidade ou feminilidade, culturalmente definidos. Assim, para a autora (Spence, 1993), o firme senso de identidade de gênero que a maioria das pessoas desenvolve nos primeiros anos da infância, permanece como uma parte central da auto-imagem por toda a vida.

Pode-se verificar, portanto, que tanto Bem (1981) quanto Spence (1984, 1985) rejeitam a visão tradicional de que a masculinidade e a feminilidade se constituem em pólos opostos de uma única dimensão, compartilhando, ao contrário, a concepção de que a masculinidade e a feminilidade consistem em características independentes, capazes de estar presentes num mesmo indivíduo, ao mesmo tempo. Tal posição permite que os indivíduos, independente de seu sexo biológico, sejam classificados, quanto à identidade de gênero, em masculinos (alto índice de masculinidade e baixo índice de feminilidade); femininos (alto índice de feminilidade e baixo índice de masculinidade); andróginos (alto índice de masculinidade e feminilidade) e indiferenciados (baixo índice de masculinidade e feminilidade).

Por outro lado, ambas as autoras (Bem, 1981; Spence, 1984, 1985) consideram que a identidade de gênero consiste em um fenômeno aprendido, que sofre a mediação de processos cognitivos. Além disso, atribuem uma grande importância às expectativas sociais desenvolvidas em conformidade com os estereótipos sexuais, os quais determinam os atributos e comportamentos típicos para cada sexo, bem como ao papel desempenhado pelos agentes socializadores na formação da identidade de gênero.

As posições teóricas de Bem (1981) e Spence (1993) trazem, ainda, implícita a noção de que a identidade de gênero é adquirida nos primeiros anos de vida, permanecendo como uma parte central do auto-conceito por toda a vida. Contudo, Katz (1986) assinala que embora certos aspectos da identidade de gênero possam ser primitivos e constantes, outros podem estar sempre mudando. De modo semelhante, O’Neil (1992) sustenta que a reavaliação e integração de valores masculinos e femininos podem ocorrer durante crises ou durante o processo normal de amadurecimento, levando a uma mudança na identidade de gênero.

Neste sentido, torna-se relevante analisar a influência que a doutrina militar poderia exercer na identidade de gênero masculina. A entrada para o militarismo ocorre entre 18 e 24 anos, período de transição entre a adolescência e a vida adulta, onde as influências que o indivíduo recebe ainda exercem grande impacto na formação de sua identidade. Por essa razão, Arkin e Dobrofsky (1978) consideram o doutrinamento militar como um poderoso agente de socialização secundária, na medida em que ele ocorre em um sistema social relativamente fechado, onde mecanismos de controle são constantemente utilizados, em conjunção com uma significativa valorização de atitudes e comportamentos que reforçam uma auto-imagem masculina.

Considerando-se, portanto, que a identidade de gênero se desenvolve através de mecanismos de aprendizagem social, mediados por agentes socializadores (Bem, 1981; Spence, 1984, 1985), e que a doutrina militar se constitui em um poderoso agente de socialização masculina secundária (Arkin & Dobrofsky, 1978), seria possível supor que tal doutrinamento estivesse contribuindo para o reforçamento e manutenção de uma identidade de gênero masculina. Assim, seria de se esperar que num grupo de militares ocorresse um número significativamente maior de sujeitos tipificados como masculinos que num grupo de civis e que, entre os militares, o número de sujeitos tipificados como masculinos fosse significativamente maior que o número de sujeitos pertencentes a outras categorias de gênero (tipificados femininos, indiferenciados e andróginos).

De modo contrário, O’Neil (1981a) considera que a socialização do papel de gênero masculino se apoiou, durante muito tempo, em valores patriarcais e opressivos, que restringiam o comportamento masculino. Entretanto, segundo esse autor (O’Neil, 1992), o movimento feminista, ao apontar para o caráter discriminatório de tais valores, contribuiu para o início de um processo de liberação dos homens, que os tem levado a redefinir valores, crenças e expectativas pessoais relacionadas à masculinidade, capacitando-os a conviver com a feminilidade em suas vidas. Tal perspectiva teórica levaria, portanto, à suposição de que, o número de homens tipificados como masculinos seria significativamente menor que o número de homens tipificados como andróginos ou indiferenciados, tanto num grupo de militares quanto num grupo de civis.

Frente a essas considerações, o presente trabalho teve como objetivo testar as predições teóricas de Arkin e Dobrofsky (1978) e de O’Neil (1992), através da comparação da identidade de gênero de homens civis e militares. Neste sentido, procurou-se verificar se haveriam diferenças significativas entre o número de sujeitos masculinos e o número de sujeitos femininos, andróginos e indiferenciados, dentro de um grupo de homens militares e de um grupo de homens civis. Além disso, procurou-se investigar se o número de militares masculinos seria significativamente maior que o número de civis masculinos.

Participantes

A amostra total foi composta de 83 militares do Exército Brasileiro, de sexo masculino, servindo no Rio de Janeiro, na graduação de 2º ou 3º sargento, e de 82 civis do sexo masculino , que não haviam prestado qualquer tipo de serviço militar. O grau de escolaridade de ambos os grupos variou do 1º grau completo ao nível superior completo, na faixa etária de 19 a 35 anos (idade média de 27,87 anos).

A escolha de sargentos para compor a amostra de militares se deveu ao fato de o Exército considerá-los elementos de ligação entre o comando e os comandados. Assim é que a frase "O sargento é o elo entre o comando e a tropa" encontra-se escrita no Pavilhão Central da Escola de Sargentos das Armas, que, até 1985, se constituía na principal escola de formação de sargentos. Por essa razão, eles, provavelmente, internalizam mais amplamente a doutrina militar, de modo a poder transmiti-la a seus subordinados.

Instrumento

Para a mensuração da identidade de gênero foi utilizado o PAQ (Questionário de Atributos Pessoais), de autoria de Spence, Helmreich e Stapp (1975), adaptado ao nosso meio cultural por Ferreira (1995).

Em sua versão brasileira, o PAQ consta de dezesseis itens opostos (como, por exemplo, muito emotivo - pouco emotivo), que devem ser julgados em uma escala que varia de 0 a 4, de acordo com o grau em que se adequam à situação de cada sujeito.

Esses itens se subdividem em duas escalas: uma escala de masculinidade e uma escala de feminilidade, com oito itens cada. A escala de masculinidade é constituída por itens referentes a traços instrumentais, considerados mais típicos do homem que da mulher, porém socialmente desejáveis para ambos os sexos. A escala de feminilidade se compõe de itens relacionados a traços expressivos, considerados mais típicos da mulher que do homem, mas socialmente desejáveis para ambos os sexos. O indivíduo, portanto, recebe escores independentes para masculinidade e feminilidade, que podem variar de 0 a 32, sendo que quanto maior o resultado, maior o grau em que ele apresenta as características mensuradas pela escala.

Os coeficientes de precisão dessas escalas, na amostra brasileira, calculados separadamente para os sujeitos do sexo masculino e feminino, através do coeficiente alpha de Cronbach, variaram de 0,60 a 0,75. A comparação dos resultados do PAQ entre os dois sexos revelou diferenças altamente significativas na direção esperada, corroborando a validade do instrumento.

Procedimentos

O instrumento foi entregue individualmente, com a garantia de sigilo absoluto em relação às respostas, não se tendo colocado nenhum dado que pudesse identificar os componentes da amostra.

Foi pedido aos sujeitos que lessem as instruções, em seguida foram esclarecidas as dúvidas surgidas, sendo posteriormente dadas ordens para o preenchimento do instrumento, com tempo livre.

Para a análise dos dados obtidos, após a correção das escalas, foram calculadas as médias, desvios padrões e medianas das escalas de masculinidade e feminilidade, bem como testes t entre a amostra de militares e de civis, nas referidas escalas.

Conforme pode ser observado na Tabela 1, não ocorreram diferenças significativas nos índices de masculinidade e feminilidade obtidos pelas duas amostras.

Tabela 1
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De acordo com os resultados obtidos nas escalas de masculinidade e feminilidade, os sujeitos pertencentes a cada uma das amostras foram, em seguida, alocados em quatro categorias de gênero: tipificados no pólo masculino (resultados acima da mediana em masculinidade e abaixo da mediana em feminilidade); tipificados no pólo feminino (resultados acima da mediana em feminilidade e abaixo da mediana em masculinidade); andróginos (resultados acima da mediana em masculinidade e feminilidade) e indiferenciados (resultados abaixo da mediana em masculinidade e feminilidade).

Em seguida, calculou-se a percentagem de sujeitos classificados em cada uma das categorias, separadamente nas duas amostras . Conforme pode ser observado na Tabela 2, na amostra de militares ocorreu uma maior percentagem de sujeitos indiferenciados (35%), seguida de sujeitos masculinos (28%), andróginos (20%) e femininos (17%). Na amostra de civis, diferentemente do que ocorreu com os militares, os sujeitos indiferenciados e andróginos se constituíram em maioria (32% cada), seguidos pelos sujeitos masculinos (19%) e femininos (17%).

Tabela 2

O teste de comparação entre proporções de duas amostras independentes (Viera, 1994) foi utilizado para se comparar o grupo de militares e de civis, no que se refere ao número de sujeitos classificados em cada uma das categorias de gênero .

A Tabela 2 evidencia que não foram observadas diferenças significativas entre a amostra de militares e de civis, no que diz respeito à proporção de sujeitos masculinos, femininos ou indiferenciados. Entretanto, a proporção de sujeitos andróginos pertencentes ao grupo de civis foi significativamente superior à proporção de sujeitos andróginos pertencentes ao grupo de militares (z= 2,00; p<0,05).

Para se comparar o número de sujeitos masculinos com o número de sujeitos classificados nas demais categorias de gênero, na amostra de militares e de civis, separadamente, foi utilizado, também, o teste de comparação entre proporções de duas amostras independentes (Viera, 1994).

Conforme pode se observar na Tabela 3, no grupo de militares, não ocorreram diferenças significativas entre a proporção de sujeitos masculinos e andróginos ou indiferenciados. Entretanto, a proporção de sujeitos masculinos foi significativamente maior que a proporção de sujeitos femininos (z= 2,20; p<0,05). No grupo de civis, não ocorreram diferenças entre a proporção de sujeitos masculinos e femininos. Por outro lado, tanto a proporção de sujeitos andróginos como a de sujeitos indiferenciados foi significativamente maior que a proporção de sujeitos masculinos (z= 2,00 p<0,05).

Tabela 3
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Discussão

A análise dos dados obtidos demonstrou não haver diferenças significativas entre o índice de masculinidade dos sujeitos militares e civis, e que a proporção de militares e civis tipificados como masculinos também não diferiu significativamente. Por outro lado, o número de militares tipificados como masculinos não diferiu significativamente do número de militares tipificados como indiferenciados ou andróginos.

Tais resultados evidenciam, portanto, que as predições de Arkin e Dobrofsky (1978), a respeito do doutrinamento militar funcionar como um poderoso agente de socialização masculina secundária, não se confirmaram na amostra de militares utilizada no presente estudo.

A visão do senso comum, amplamente difundida em nossa sociedade, de que o Exército é uma "escola para ser homem" não recebeu, portanto, apoio empírico. Parece, assim, que o fato do Exército recompensar a posse de características masculinas numa intensidade maior que a sociedade em geral, não está se mostrando suficiente para o desenvolvimento de um senso de adequação de seus membros ao padrão social típico de masculinidade, isto é, de uma relação direta entre doutrinamento militar e masculinidade.

Foi observado, ainda, que, o número de civis classificados como andróginos e indiferenciados foi significativamente maior que o número de civis classificados como masculinos. Além disso, o número de sujeitos civis andróginos foi significativamente maior que o número de sujeitos militares andróginos.

As evidências obtidas na amostra de homens civis permitem, portanto, a confirmação das predições de O’Neil (1992), segundo as quais os homens iniciaram um processo de liberação, que os têm levado a redefinir valores, crenças e expectativas pessoais relacionadas à masculinidade, capacitando-os a conviver com a feminilidade em suas vidas. Parece, assim, que o papel social de masculinidade tradicional, que traz implícita a concepção de superioridade do homem em relação à mulher, está se mostrando inadequado tanto aos homens quanto às mulheres (O’Neil, 1981a).

Entre os militares, o número de sujeitos indiferenciados e andróginos não se mostrou significativamente superior ao número de sujeitos masculinos, mas o contrário também não se verificou. Tais resultados permitem, portanto, a interpretação de que, no meio militar, pode estar ocorrendo um confronto entre os rígidos valores masculinos tradicionais que caracterizam a doutrina militar e o processo de liberação masculina suscitado pelo movimento feminista. Neste sentido, é possível que os militares, muito mais que os civis, estejam vivenciando sentimentos de inadequação, medo da feminilidade, e emoções negativas associadas a valores, atitudes e comportamentos relacionados ao gênero, os quais, segundo O’Neil (1981b, 1990), se constituem em indicadores de conflitos sobre o papel de gênero.

Os dados do presente estudo levam, portanto, à conclusão de que, atualmente, não parece haver, em nossa sociedade, um consenso sobre o papel sexual masculino, e que as expectativas sociais tradicionais não estão sendo mais tão eficazes no direcionamento da identidade de gênero dos homens, quanto até então se acreditava. A sociedade pode estar passando por um processo de transição, em busca da definição de um novo padrão de masculinidade, que resulte, talvez, em uma maior congruência entre a identidade de gênero de homens e mulheres.

Seria interessante, portanto, que estudos futuros se detivessem na investigação das implicações que tais mudanças poderão ter no ajustamento psicológico dos homens, no que se refere à vivência de conflitos sobre o papel de gênero. Tais estudos seriam particularmente relevantes no ambiente militar, onde as novas expectativas sociais sobre a masculinidade vão de encontro aos valores condizentes com os pressupostos militares.

O aprofundamento dessas questões poderia contribuir para uma maior compreensão do fenômeno da identidade de gênero masculina como determinante do comportamento social, bem como oferecer subsídios para uma possível revisão do perfil psicológico e do treinamento necessário às diferentes funções militares, de modo a que seus ocupantes se constituam em indivíduos plenamente adaptados a seu meio social.

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  • Identidade de gênero masculina em civis e militares

    Marcos Aguiar de Souza
    Universidade Federal do Rio de Janeiro
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 1999
    • Data do Fascículo
      1997

    Histórico

    • Aceito
      25 Maio 1997
    • Revisado
      25 Abr 1997
    • Recebido
      14 Mar 1997
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