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Revolução hoje?

POLÊMICA

Revolução hoje?

Qual o papel que a idéia de revolução tem, nos dias de hoje, na organização do pensamento de esquerda? LUA NOVA fez esta pergunta a Armênio Guedes e Décio Saes, que respondem abaixo.

Armênio Guedes * * Armênio Guedes é Jornalista.

A idéia de uma transformação social, ou melhor, de urna revolução socialista, está presente na cabeça dos homens desde que o capitalismo surgiu na cena histórica. É com Marx, porém, na metade do século passado, que essa idéia toma forma mais definida e passa a se materializar na consciência de milhões de pessoas.

Para dar à revolução social um conteúdo científico, resgatando-a da utopia e do romantismo até então predominanates no movimento operário, Marx empreendeu um estudo profundo do capitalismo e das lutas sociais e políticas que, depois da Revolução Francesa, começaram a se alastrar na Europa e na América. Na base das idéias elaboradas por ele e por seu amigo Engels, e, também, na base do fecundo trabalho político por ambos realizado, surgiram os partidos socialistas, que passaram a ter importância decisiva na organização da ação e do pensamento na organização da ação e do pensamento anti-capitalista, de esquerda, de todo o mundo.

Esses partidos, na medida em que assimilavam o socialismo científico de Marx e Engels e ganhavam base de massas, foram, pouco a pouco, compreendendo que sozinhos, como vanguardas, mesmo quando abrigavam em suas fileiras grandes contingentes de militantes, seriam condenados ao isolamento e não estariam em condições de sensibilizar e atrair para a luta revolucionária a maioria do povo. Por isso dedicaram-se, desde que apareceram, tanto na Europa como na América, a estimular os trabalhadores e demais classes subalternas a se reunirem nos mais variados tipos de organizações, fossem sindicatos, cooperativas ou centros culturais, onde os socialistas, militantes de vanguarda, deveriam obrigatoriamente, atuar.

Através da difusão de seu ideário revolucionário e da organização de lutas parciais e de conquistas também parciais, também empreenderam a tarefa de levar o grosso da população explorada a compreender a necessidade de uma transformação social radical, quer dizer, de uma revolução socialista. Essas organizações, não estritamente políticas, ao longo de muitos decênios cresceram e se transformaram, em muitos países, em pontos de apoio para nuclear o pensamento e a atividade, tanto do mundo do trabalho como da cultura.

Essa linha de ação seguida em todas as partes do mundo, primeiro pelos partidos socialistas tradicionais, depois da revolução russa de 1917, pelos partidos comunistas filiados à Internacional Comunista foi, em nosso século XX, às vezes diretamente, outras indiretamente, um dos mais importantes fatores, senão o mais importante, para mobilizar, reunir e organizar o pensamento e a ação de milhões de homens de todos os continentes. Basta citar, nesse sentido, o que significou, nos anos trinta, antes da Segunda Guerra Mundial, a criação das frentes populares para conter o avanço internacional do facismo e defender o regime democrático nos países em que ele estava ameaçado.

Não há dúvida, portanto, de que durante um longo e tumultuado período da história contemporânea, principalmente naquele que se situa antes e depois das duas guerras mundiais, a idéia da revolução social penetrou profundamente na mente de milhões de seres humanos e se transformou numa força material de primeira grandeza, organizando o pensamento da esquerda e o pondo em ação imensos contingentes de explorados e oprimidos de todo o mundo.

E hoje, neste final de século, a idéia de uma revolução social ainda exerce o mesmo papel na organização do pensamento das esquerdas?

A partir dos nos cinqüenta, quando o mundo tomou conhecimento das deformações produzidas pelo stalinismo nos países socialistas, o modelo de revolução e de poder revolucionário soviéticos, que se tornou universal depois da vitória de outubro de 1917, começou a perder sua força de atração e entrou em crise. Uma crise que teve repercussão em todo o pensamento da esquerda, principalmente nos seus segmentos mais radicais. A verdade é que o grosso do movimento revolucionário contemporâneo, com raras exceções, tomou como modelo, como fonte de inspiração, a política e o regime dos países do "socialismo real". Assim é que, hoje, os inúmeros partidos e movimentos que se identificaram com o ortodoxia soviética de revolução "explosiva" e, conseqüentemente, com a idéia de criação de um poder socialistas autoritário e burocrático, de um socialismo essencialmente distributivista, mas incapaz de criar a riqueza que daria "pão e rosas", para todos, perderam sua capacidade de organizar o pensamento e a ação da esquerda, na medida em que não admitem a crise daquele modelo e não revêem criticamente suas posições.

Esta situação de crise, que se prolonga há vários anos, tem sido aproveitada pelas forças conservadoras e reacionárias para restaurar e reabilitar suas posições políticas e ideológicas que, tempos atrás, estavam inteiramente desacreditadas. Do lado das forças revolucionárias, como era de se esperar, teve início, e agora se aprofunda, o debate sobre a experiência histórica do socialismo. É o que ocorre na Itália, para citar apenas o exemplo mais conhecido. Aí, os comunistas organizados no PCI tomam, como ponto de partida para sua reflexão sobre a crise de esquerda, o fato de a URSS ter deixado de ser — como a primeira maior experiência de um regime socialista — o que foi durante várias décadas: exemplo e estímulo do movimento revolucionário internacional. Com essa discussão, que tenta fugir a todo tipo de ortodoxia e doutrinarismo, os comunistas italianos buscam o caminho para sair da crise e inaugurar uma fase nova, superior, da luta dos trabalhadores e de todos os explorados contra o capitalismo — uma luta que vem de longe e que é mais atual do que nunca.

Quando essa fase nova surgir, e sobre isso não temos dúvidas, a idéia de revolução — e aqui pouco importam as novas formas que ela deverá assumir — voltará a desempenhar papel decisivo na organização da ação e do pensamento de esquerda. Haverá, então, condições para rearticular os grandes movimentos sociais de nossa época, atualmente dispersos e manipulados por forças políticas que lhes são estranhas. Nos dias difíceis que atravessamos, isso é uma esperança e um consolo para as esquerdas de nosso país e de todo o mundo.

Décio Saes** ** Décio Saes é professor de Ciência Política na UNICAMP (SP).

LUA NOVA pergunta: qual é a idéia de Revolução para os militantes de esquerda, hoje? Para grande parte da esquerda, no Brasil ou alhures, a idéia de Revolução não tem hoje — como também não teve ontem ou anteontem — a menor importância. A expressão "esquerda" designa, no vocabulário político corrente, uma ampla frente integrada por todos aqueles que se opõem, por uma ou outra razão, ao status quo, também concebido de maneira ampla. Assim, fazem parte da esquerda, hoje, não apenas os revolucionários anticapitalistas, mas também os reformistas que aceitam a persistência do capitalismo monopolista, desde que este, por exemplo, permita uma melhor distribuição de renda, ou trate de preservar o meio ambiente, ou se compatibilize (a utopia do dia!) com um "socialismo de mercado".

A esquerda "revolucionária" se divide, hoje, majoritariamente em duas tendências. De um lado, estão aqueles que, concluindo terem fracassado as diversas experiências históricas de construção do socialismo, aderem a um pessimismo de longo prazo e passam a considerar utópica (a despeito de desejável) a reorganização efetivamente socialista das sociedades. Filiam-se igualmente a essa corrente pessimista e "pós-utópica" aqueles que, diante dos progressos da automação e da informatização da produção no mundo capitalista avançado, consideram que o projeto de Revolução socialista estaria perdendo a atualidade pela tendência à desapropriação do proletariado fabril, seu agente potencial.

De outro lado, estão aqueles que se inquietam com nada e se apegam, com certeza férrea, a uma idéia de revolução social segundo princípios tão-somente esboçados, há mais de um século, nos textos clássicos do marxismo.

A meu ver, conferir novamente importância à idéia de Revolução equivale a revitalizar o programa socialista; e isto implica superar o pessimismo e o dogmatismo que coexistem e se alimentam reciprocamente dentro dos meios de esquerda. Para tanto, é preciso avançar na crítica às teses que dão lastro teórico a essas duas tendências.

Em primeiro lugar, o fracasso da experiência de construção do socialismo nas sociedades pós-revolucionárias não prova que a construção do socialismo seja impossível. Em toda luta, há sempre duas possibilidades para cada contendor: ganhar ou perder. E, em política, o bom perdedor é aquele que, em vez de se lamuriar, procura tirar lições práticas da derrota, isto é, detectar os erros e desvios que devem ser evitados daqui por diante, caso se queira chegar a vitória.

Ora, a análise cuidadosa de enormes experiências práticas de massa como a Revolução russa e a Revolução chinesa nos permite antes de mais nada, tirar uma importantelição teórica: como já havia sugerido Marx (que não viveu o suficiente para ver comprovada na prática social a sua indicação), pode existir, ao lado do capitalismo privado, um capitalismo de Estado. Ou seja, a história dessas e de outras revoluções do século XX nos obriga a ampliar e aprofundar o próprio conceito de capitalismo; afinal, o fenômeno do controle real dos meios de produção por dirigentes de empresas estatais e de extração da mais-valia através do Estado, mais que configurar uma nova relação de exploração, historicamente inédita e distinta do capitalismo, é uma variante da relação sócio-econômica capitalista básica.

A essa lição teórica se articula uma lição política: novas revoluções populares tenderão, seguindo os passos das revoluções anteriores, a se converter em instrumentos de implantação do capitalismo de Estado, caso a força que as dirige não se oriente por um programa socialista já inspirado pela crítica radical a essa nova variante do capitalismo.

Esse programa socialista deve se erigir sobre três pilares: 1) defesa da gestão coletiva, de massa, das unidades de produção e do conjunto da economia nacional (algo distinto da direção por uma só pessoa das empresas estatais e dos ministérios econômicos, à moda soviética; e igualmente diferente da autogestão burguesa, não de massa —meramente "anti-Plano" —, de tipo iugoslavo); 2) crítica da divisão capitalista do trabalho (separação entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre concepção e execução, parcelização das tarefas no processo de trabalho, etc.), bem como da separação entre cidade e campo, e conseqüente proposta de reorganização das forças produtivas em correspondênica com o novo modo de gestão dos meios de produção; 3) proposta de que a desestatização da sociedade socialista em construção se inicie imediatamente após a tomada do poder político, através de uma transferência crescente das atribuições do Estado central para comunas ( = unidades simultaneamente agrícolas, industriais e político-administrativas, onde todo produtor deve ser ao mesmo tempo administrador), do controle crescente dos funcionários do Estado central pelas massas (mandato imperativo), isto é, representantes eleitos para defender determinadas propostas, temporariedade revocabilidade de mandatos, etc.) e do ataque à divisão do trabalho no seio do aparelho de Estado (liquidação dos "Poderes separados — ministérios, Judiciário, Assembléia — e reorganização conselhista, soviética, do conjunto do aparelho).

É claro que só uma força política que tenha confiança na iniciativa das massas pode sustentar um tal programa, pois este implica que se estabeleça uma relação de poder de soma zero entre massas trabalhadoras e Estado socialista, bem como entre massas trabalhadoras e organização partidária socialista, ao longo do processo de construção do socialismo.

Passemos finalmente à tese segundo a qual a automação e a informatização da produção tendem a liquidar o agente histórico potencial da revolução socialista: o proletariado fabril. Deixemos de lado o fato de que essa transformação global é uma hipótese de longo prazo até mesmo para os países capitalistas mais avançados, e que antes disso muitas lutas sociais serão travadas, inclusive para obstaculizá-las; bem como o fato de que, no caso dos países capitalistas atrasados (como o Brasil), tal hipótese constitui pura ficção científica.

A automação e a informatização transformam, efetivamente, o trabalho fabril. Mas não nos parece que essa transformação tenda a minar o potencial revolucionário dos trabalhadores de fábrica; ao contrário, ela é de molde a intensificar o instinto anticapitalista do proletariado fabril. Isto se dá porque, de um lado, a automação e a informatização tendem a agravar a separação entre concepção e execução no processo de trabalho: os analistas de programas concebem o "trabalho da máquina", os trabalhadores de fábrica controlam e vigiam a máquina trabalhando. De outro lado, a automação e a informatização exigem a multiplicação das tarefas de conservação, reparação e limpeza: desenvolve-se assim um subproletariado fabril, periférico, absolutamente desqualificado, perto do qual o trabalhador-vigilante faz figura de aristocracia operária.

Diante desse agravamento da divisão capitalista do trabalho e dessa brutal desqualificação da maior parte dos trabalhadores fabris, como imaginar que o socialismo deixou de estar na ordem do dia?

Todavia, que não se enganem os que prefeririam que os socialistas revolucionários pregassem a volta a uma sociedade pastoril, sem máquinas e sem industria. Esses socialistas não têm razões para imitar os luddistas, que queriam, na Inglaterra do século passado, jogar ao mar todas as máquinas, robôs e computadores. Ao mesmo tempo, não deve aceitar como um dado a tecnologia legada pelo capitalismo a qualquer sociedade pós-revolucionária. O que se impõe, na construção do socialismo, é a adaptação tecnológica: repensar de uma ótica de massa o projeto de cada máquina, eventualmente desmontá-la eremontá-la, se isso contribuir para aumentar o grau de controle dos trabalhadores manuais sobre o conjunto do processo de trabalho. Dir-se-á que esse reequacionamento das forças produtivas, de modo a compatibilizá-las com o modo socialista de apropriação dos meios de produção, é utópico. Todavia, ainda uma vez, é a experiência prática das massas que nos indica a sua possibilidade real; não sendo nem luddistas, nem idólatras da máquinas, os trabalhadores chineses encontraram, durante sua Revolução Cultural, as condições políticas favoráveis a esse gigantesco empreendimento.

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    Armênio Guedes
    é Jornalista.
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    Décio Saes
    é professor de Ciência Política na UNICAMP (SP).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 1986
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