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Ai que saudade do MDB!

PENSANDO O BRASIL

Ai que saudade do MDB!

Maria Victória Benevides

Socióloga, professora na Faculdade de Educação da USP e membro do Conselho Deliberativo do CEDEC

"Se o PMDB não se recicla, pode virar uma UDN moderna", alertou Jarbas Vasconcelos, no primeiro dia do ano, sobre seu ex (e futuro?) partido. A advertência é cruel; encerra, para os que se lembram da atuação e da imagem da antiga UDN, um vatícinio implacável, um pré-atestado de óbito para o partido que se pretende democrático, de massas, da mudança e da participação. Pois aquela UDN — a União Democrática Nacional — foi o oposto de tudo isso: foi elitista, reacionária e golpista; participou ativamente do golpe de 64 e contribuiu, na "ideologia" e na prática, para consolidação do regime militar-empresarial que nos desgraçou por duas décadas. E ainda, para escarnamento do partido que se dizia liberal "da eterna vigilância", o último presidente udenista acabou, entre patético e sinistro, ardoroso defensor do malufismo.

A advertência — valorizada por vir do combativo prefeito de Recife, eleito pelo Partido Socialista devida ao racha do PMDB na cidade reconhecidamente mais "politizada" do país — carrega, portanto, o peso de uma verdadeira praga. Mas, sortilégios à parte, o que haveria de real, ou, pelo menos, próximo do verossímil, nessa avaliação tão negativa sobre os descaminhos do PMDB? Parece claro que Jarbas Vasconcelos não falou no vazio; várias lideranças, dentre as mais ilustres do PMDB "histórico", já externaram o seu inconformismo. O senador Fernando Henrique Cardoso, líder do governo Sarney, e o mais famoso "intelectual orgânico" peemedebista, também percebeu o risco de seu partido transformar-se em um vistoso "Arenão" (a Arena, como se sabe, foi o sucedâneo natural da UDN, após a extinção de todos os partidos com o Ato Institucional n.º 2, de outubro de 1965).

Moderna UDN. "Arenão" redivivo. Afinal, que revival maldito ronda o atual PMDB? Por que se lembram da UDN de tão triste memória, por que desenterram a Arena, pior ainda? Para entender as críticas — e, quem sabe, exorcizar as pragas — seria preciso voltar às origens do MDB, bem como tentar desvendar possíveis semelhanças entre o PMDB e a falecida UDN.

Uma breve lembrança histórica (sobretudo útil para os leitores mais jovens) seria um bom começo.

Toda comparação, seja entre pessoas, seja entre fenômenos históricos, é sempre temerária, sujeita a imprecisões e mesmo injustiça. Feita a ressalva — e com a devida vênia à célebre afirmação de que a história se repete como farsa — admite-se que um exercício comparativo pode enriquecer a análise sobre instituições ou fatos políticos. No caso em pauta, trata-se de "comparar" alguns aspectos da UDN — da "redemocratização" de 1945 à "revolução" de 1964 — com a trajetória do PMDB, do valoroso MDB ao partido omnibus da Nova República. É claro que tal exercício deve levar em conta as diferenças de conjuntura, interna e externa, e as mudanças econômicas e culturais desses últimos anos — mudanças, aliás, menos evidentes na política das elites do que na sociedade como um todo.

A grande virada da "sigla mágica"

Em primeiro lugar, convém lembrar o fundamental da história peemedebista, emobra possa parecer óbvio: PMDB não é sinônimo de MDB. O Movimento Democrático Brasileiro surgiu como uma "organização provisória" (assim como a Arena), para ser o partido de oposição que, de certo modo, deveria conferir "legitimidade" ao regime instalado pelo golpe. Reunia egressos dos partidos extintos, majoritariamente do PTB (o primeiro Partido Trabalhista, de Jango e Brizola; nada a ver com isso que está aí), os socialistas, progressistas do PSD (como Tancredo e Ulisses) e até uns poucos udenistas. De "oposição tolerada", o MDB tornou-se uma frente aguerrida contra a ditadura, as oligarquias, a repressão militar, a centralização económica. A organização deitou raízes profundas em todo o país, numa inexorável ascensão eleitoral e política. Símbolo da resistência (da qual as anticandidaturas de Ulisses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho, em 1974, assim como a cruzada "Projeto Brasil" de Teotônio Vilela, são emblemáticas), o MDB assume a luta pela restauração do Estado de direito e extinção da Lei de Segurança Nacional. Combate o embuste do "milagre econômico" (1967-1973), o arrocho salarial e a perseguição aos sindicalistas combativos, os desmandos administrativos, a corrupção, os pacotes do arbítrio e os casuísmos eleitorais. Junto a outras entidades nacionais — como a Igreja e a Ordem dos Advogados, OAB — denuncia a repressão política e as incontáveis violações de direitos humanos, batalha pela anistia e reivindica a convocação de eleições diretas em todos os níveis e de uma Assembléia Nacional Constituinte (livre e soberana, e não a "congressual" que o PMDB acabou aprovando...). No final dos anos setenta o MDB participa intensamente dos movimentos sociais e populares, além da solidariedade ativa com o movimento sindical, sobretudo nas grandes greves do ABC paulista. O MDB era, portanto, mais do que um partido político; era, mesmo um movimento, era uma bandeira de luta. De "oposição consentida" tornara-se o partido da sociedade civil.

A evolução eleitoral do MDB é eloqüente. Em 1970 chegou a cogitar da autodissolução, emprensado entre a fúria do regime para cassar mandatos e cercear o poder Legislativo e a frustração com o parco resultados nas urnas (a alta porcentagem de votos brancos e nulos, votos de protesto, superou a votação emedebista). Em 1974, no entanto, é a grande virada: o MDB consagra-se a encarnação da vitória popular, sobretudo nos centros urbanos, mais desenvolvidos, como também nas periferias pobres mais "modernas". O MDB lidera o processo de deslegitimação do regime militar. A "sigla mágica" — na expressão de seu presidente — derrota a Arena no Senado, onde elege 16 em 22, e, na Câmara dos Deputados, sua votação passa de 28% para 44%. Nas eleições de 1978 — apesar do "pacote de abril", que entre outras flores do arbítrio fecha o Congresso e inaugura os senadores biônicos (Geisel, 1977) — o MDB confirma sua penetração popular. Só na legenda, sem especificar nome de candidato, consegue quatro vezes mais votos do que a Arena. Esse tipo de voto na legenda, favorecendo o MDB, acrescido do fato de que, segundo pesquisas eleitorais, grande parte dos eleitores não tinha candidato até a véspera do pleito, ou depois não se lembrava em quem tinha votado, contraria a tradição "fulanista" brasileira, de se votar em pessoas, e não em partidos. E confirma a tese de Bolívar Lamounier de que, para o MDB, havia uma identificação partidária e ideológica que fugia aos padrões típicos da clientela e do personalismo.

Essa, portanto, a grande diferença entre o MDB e o PMDB. O MDB, afinal, éramos todos nós.Todos — liberais mais ou menos reformistas, socialistas e comunistas, futuros petistas, pedetistas ou pefelistas — que lutávamos, de diversas maneiras, pela derrubada do regime. É por isso, aliás, que não tem sentido o PMDB apelar para o monopólio da resistência à ditadura sempre que necessita de um passado sagrado para "absolver" um escorregado por demais "realista". Assim agindo, o PMDB incorre em dois erros: o passado não apaga os pecados do presente, e o MDB não foi só "deles".

Por ocasião da reforma partidária de dezembro de 1979 (o esquema Portella/Golbery para "dividir as oposições", e que mantinha, na prática, a camisa-de-força do bipartidarismo, tamanhas eram as exigências para a formação de novos partidos), surge o PMDB, herdeiro por filiação direta do MDB. Mas o providencial "P", acrescentado à sigla de tantos encantos, significou mais do que um espichamento verbal para cumprir a lei que exigia a denominação "partido". Quer pela direita — com o desgarramento dos liberais conservadores para o Partido Popular, PP — quer pela esquerda, com a criação do Partido dos Trabalhadores, PT, e do Partido Democrático Trabalhista, PDT — e, ainda, com a saída da ala mais fisiológica para o PTB, então de Ivete Vargas, o MDB mudou. Deixou de ser a única oposição para se transformar no partido majoritário da oposição. De "frente" a "partido", do todo à parte, vê-se obrigado a disputar com dissidentes ou antidos aliados, além de insistir no "mito da unidade" (a famosa "união nacional", sempre lembrada pelas elites), renegando, às vezes, seu próprio programa, que defendia o pluripartidarismo como exigência da construção democrática.

Como na anedota do computador português, o PMDB de hoje teria, do MDB dos tempos heróicos, apenas "uma vaga lembrança". A antiga frente das oposições teria se transformado, graças à inércia do clientelismo e aos vícios da sempiterna conciliação, numa "frente de situações".Mas isso já é outra história. Voltemos à UDN e suas eventuais semelhanças.

A UDN também surgiu como um movimento, uma ampla frente de oposições que reunia, em 1945, os mais variados adversários de Getúlio Vargas e do Estado Novo. Congregava conservadores e liberais de todos os matizes, além de dissidentes comunistas e os socialistas da "esquerda democrática". Esta seria, digamos, uma comparação positiva com o MDB. A UDN — ao contrário dos outros dois grandes partidos do período, o PTB e o PDS, Partido Social Democrático, ambos fortemente ancorados no Estado — também poderia ser considerada, ao nascer, o partido da sociedade civil. É claro que aquela frente liberal do fim do Estado Novo difere sensivelmente da frente democrática dos anos setenta, mas a UDN de 1945 e o PMDB do início desta década têm em comum o fato de surgirem ambos como frentes contra um poder autoritário que toma a iniciativa da distensão.É sabido que o ditador Getúlio Vargas antecipou-se à oposição convocando eleições e Constituinte, embora ao preço de sua deposição (para voltar, cinco anos depois, "nos braços do povo"). É sabido, igualmente, que o general Geisel iniciou a abertura "lenta, gradual e segura". Mas a UDN em pouco tempo descaracteriza-se como frente: a esquerda democrática forma o Partido Socialista, os liderados de Adhemar de Barros criam um novo partido, o futuro PSD e os "carcomidos" de Arthur Bernardes ressuscitam o Partido Republicano.

Além disso, entre muitas contradições e ambigüidades em seu liberalismo (de democracia nem pensar), a UDN estimulou, em seu interior, grupos tão díspares como os "chapas-brancas" e a "Banda de Música" — o que equivaleria à distinção entre "adesistas" e "autênticos" no MDB-PMDB.

A gloriosa herança udenista (de raízes no "lenço branco" de Teófilo Otoni) foi sendo adapatada no altar do pragmatismo e da convicção de que, em política, "feio é perder". Em 1960, ao apoiarem Jânio Quadros, que os desprezava solenemente, os udenistas diziam estarem fartos de "derrotas gloriosas". Mas a herança, apesar de tantas vezes descuidada, será invocada, na UDN como o PMDB, como álibi supremo para a consagração de uma ambígua união nacional... Quando o PMDB, por exemplo, faz campanha do "voto útil", afirmando que sua eventual derrota será "a morte da democracia", não estará refletindo o comportamento elitista e "iluminado" da velha UDN? Na chamada democracia populista, udenistas radicais como Carlos Lacerda chegaram a pregar "o golpe militar contra o golpe eleitoral", pois "o povo não sabe votar". O que dizer de certa reação peemedebista, diante da última derrota em São Paulo, ao deixar implícito que a culpa era do povo e... ele que se dane?

O udenista histórico Afonso Arinos (hoje presidente da comissão de estudos do governo para a próxima "substituinte"), desenvolveu, nos anos cinqüenta, uma edificante tese sobre a "presciência das elites": a elite sabe, melhor e antes do povo, o que é bom para o povo. Trata-se daquela mesma "presciência" que fez com que altos dirigentes do PMDB, depois de aproveitarem o máximo da mobilização popular pelas eleições diretas em 1984 (o nome certo é manipulação), descartassem o povo — "agora é a vez dos profissionais" — para negociarem o Colégio Eleitoral e a "transição transada". Aliás, sobre o papel do PMDB na campanha das diretas convém lembrar: ainda no tempo do MDB o partido negou número em plenário para votar a emenda Montoro a favor das diretas (1978); durante a campanha de 1982 não denunciou amplamente o Colégio Eleitoral; apesar de se dizer favorável às diretas em todos os níveis, não patrocinou eleições para prefeitos nas capitais, em 1983; as principais lideranças paulistas vacilaram antes de se engajarem na campanha diretas-já, iniciada com o comício do Pacaembu em novembro de 1983.

Nasce um pacto conservador

Revivendo a tradicional "conciliação entre elites", a ruptura do PMDB com seus "autênticos" (que fim levou o grupo "só diretas"?) e com os ideais populares e mudancistas do MDB foi fatal para a identidade do partido. Não seria exagero afirmar que a deformação mórbida começou já em 1981, com a incorporação do PP (ironicamente apelidado "partido dos patrões", ou "partido clandestino da burguesia") ao PMDB. E que foi, sem dúvida, um lance brilhante de oportunismo para enfrentar o casuísmo da vinculação de votos imposta pelo pacote do governo. Mas naquela fusão percebe-se claramente o embrião de um pacto conservador, que deu no que deu: na Aliança Democrática, co-liderada por fiéis serviçais dos vinte anos da ditadura, a começar pelo próprio José Sarney (este, aliás, egresso da "Bossa Nova" da UDN, da qual participavam outros distintos da Nova República, como Aluisio Alves, José Aparecido, Aureliano Chaves, Abreu Sodré, Jorge Bornhausen e Antonio Carlos Toninho Malvadeza). A fusão PP-PMDB era o embrião, portanto, desta aliança incrível que, nas palavras de Florestan Fernandes, expõe o conchavo da perversa e pervertida imaginação conservadora (A Nova República, ed. Zahar).

Sobre a nova realidade político-partidária criada pela mágica camaleônica PP-PMDB, vale a pena citar a avaliação do peemedebista Luis Carlos Bresser Pereira: "Asclasses dominantes estão, hoje, divididas entre o PDS e PMDB. No passado recente elas se concentravam na ARENA, mas nos últimos anos os setores progressistas socialmente e mais democráticos da burguesia e da tecnocracia passaram para o PMDB — ou diretamente, ou via PP (Folha de S. Paulo, 27.3.1984). Tal constatação, de fonte fidedigna, estabelece mais uma nítida distinção entre o PMDB e suas origens. As pesquisas realizadas por Lamounier e equipe sobre o crescimento do emedebismo urbano sempre apontaram a identificação inequívoca do MDB como "o partido dos pobres", "o partido do povo" (entre outros, Voto de Desconfiança, Ed. Vozes, 1980).

Negociação, transição, conciliação. A aceitação da "transição transada" vinha embutida no Colégio Eleitoral. Dr. Ulisses justificava ser necessário matar a cobra com o veneno da cobra. Mas o bicho revelou-se um sapo dendrobata, e a pajelança não parece ter dado certo... A participação no Colégio Eleitoral, portanto, terá sido para o PMDB um equívoco tão nefasto quanto o foi, para a UDN em 1947, participar do "acordo interpartidário" em torno do presidente general Dutra. Para Virgílio de Mello Franco, liberal enragé antigetulista, a adesão da UDN ao governo dos interventores (PSD) e do "Condestável do Estado Novo (Dutra) desmoralizava sua pretensão de se transformar num "partido de centro inclinado para esquerda". Segundo Virgílio, a "união nacional" por aquele preço significaria, para a oposição udenista, "rendição incondicional". A seqüência histórica lhe daria razão: o PSD controlou o acordo e ocupou todos os espaços de poder. A UDN perdeu dedos e anéis, perdeu não apenas o poder como a "pureza dos princípios", restando-lhe, como dizia Adaucto Lúcio Cardoso, "humilhação e vergonha".

O atual PMDB, envolvido nos acordos com egressos da ARENA-PDS e luminares do PP-PFL, e ainda inchado com a adesão de malufistas et caterva, arrisca-se ao mesmo papel inglório da inglória UDN. No PMDB há quem defenda um "partido omnibus"; mas, nesse ideal de "partido de todos", será que contavam com malufistas e janistas disfarçados? Além de esgarçar sua identidade (afinal, o próprio Tancredo já dissera, ao fundar o PP, que seu partido não poderia ser o mesmo de Miguel Arraes), o PMDB perde espaço, credibilidade e voto. Já foi o tempo, desconsola-se o presidente do partido, em que "o PMDB elegia até poste de rua". No recuo da reforma agrária, na recusa de uma Constituinte livre e soberana, na inoperância diante do que o próprio denominou "entulho autoritário", na insensibilidade diante do descrédito crescente do Legislativo, na incompetência para enfrentar a crise econômica e a corrupção administrativa, por exemplo, as desastradas posições do PMDB completam um quadro lamentável de desagregação galopante. O grande risco dessa perda de identidade, voltando ao alerta de Jarbas Vasconcelos, seria sedimentação na Aliança Democrática, cada vez mais sacramentada pela submissão aos militares (Sarney não lhes prometeu reagir energicamente contra toda tentativa de "desobediência civil"?) pela submissão à burocracia estatal e aos empresários. Já vimos esse filme.

A questão da identidade perdida é, portanto, fundamental. O MDB, apesar de frente, apresentava um perfil razoavelmente homogêneo e atuava de forma coerente. O PMDB, hoje, tornou-se um partido frouxo e contraditório. Como interpretar essa transformação fugindo da fatalidade e das traições pessoais? O motivo mais apontado parece óbvio: a mudança é fruto da passagem da oposição à situação. O que significaria, afinal, mais um exemplo da política de nossas elites: "nada mais parecido com um conservador do que um liberal no poder". Ou então, em analogia com a famosa "lei de ferro na oligarquia", de Robert Michells, significaria uma lei dos partidos brasileiros: são homogêneos, tendendo ao crescimento, quando estão na oposição; mas se fragmentam ou tendem ao desaparecimento, quando assumem o poder (a Arena-PDS já seria uma exceção, pois foi sólida durante o poder e se esfacelou fora dele) Apesar das evidências, e do grão da verdade, a "conquista do poder" — e com todos os seus penduricalhos, para o bem e para o mal — não explica, por si só, a desagregação do PMDB. O problema maior, ao que tudo indica, decorre da constatação de que o PMDB não conseguiu se firmar, sem ambigüidades, como um partido programático. Seu programa mais concreto sempre foi ser de oposição.

Ora, o MDB também era um partido de oposição; mas, sendo contra o governo e contra o regime, só poderia aspirar ao poder com a mudança do regime. Essa oposição radical conferia ao MDB homogeneidade e firmeza. Um partido oposicionista que luta apenas contra o governo pode ser amaciado com perspectiva de se tornar governo — o velho princípio da alternância no poder, a cooptação, a conciliação. Portanto, não sendo um partido programático, o PMDB acaba se fragmentando devido ao fato (inadimissível para alguns de seus líderes) de que não foi o partido que derrubou o regime. Ao contrário, conforme já visto, a celebração do grande acordo liderado por Tancredo Neves é que selou o declínio do PMDB. O regime quebrou pela eficiência do novo pacto entre o PMDB e as forças políticas dominantes (o PDS, o futuro PFL e o estamento militar) visando uma "democratização" tão controlada quanto a de 1945. Não tendo efetivamente um programa, no momento em que o regime se desmantela, sem que o partido possa reivindicar sozinho os louros da vitória, o rei está nu, o PMDB surge desbussolado, atacado de "crua e feia doença". Não é por acaso que vários peemedebistas, identificados com a corrente "progressista", têm insistido que passou a época da luta contra AI-5 e o partido deve ter propostas concretas para o governo e a sociedade.

Mas, como entender um programa comum para o atual PMDB? Na retórica e nos palanques seu programa é o da participação e da mudança. Mas, na prática, que mudanças poderiam agradar aos diferentes grupos que se digladiam no interior do partido? Em recente artigo sobre "a crise no PMDB", o cientista político Hélio Jaguaribe situa concretamente a questão: "O que é o PMDB? Quem são os verdadeiros representantes do partido? A resposta, em termos objetivos, é necessariamente múltipla. O PMDB é uma aspiração à social-democracia (Fernando Henrique, Waldir Pires). É uma aspiração ao capitalismo liberal (Gusmão, Hugo Castello Branco). É um sistema de clientelismo do poder (Quércia). O PMDB é tudo e não é nada" (Folha de S. Paulo, 9.2.1986).

Dizia Tancredo Neves, com muita graça e inconfundível ironia, que o regime do golpe de 64 inaugurava "o Estado Novo da UDN". Raymundo Faoro — o Faoro de Os Donos do Poder — em brilhante entrevista à revista Senhor (n.º 250/251), retoma a tese cíclica da tentação oligárquica de um "despotismo esclarecido", desta vez na gestação do Estado Novo do PMDB — pelo menos o PMDB de Sarney. E este não seria um risco, mas uma "catástrofe". De qualquer forma, Faoro conclui que "o PMDB ainda é o centro do jogo. Um PMDB diferente do que era na oposição e cuja fisionomia não sabe qual é ou qual será".

É isso aí. Para o PMDB que se quer — "autêntico", na memória do valoroso MDB, trata-se de desvendar, de recuperar ou construir essa fisionomia, essa identidade. E quanto mais cedo melhor. Pois senão pode acabar, como a UDN da "eterna vigilância", em "apagada e vil tristeza".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1986
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