Acessibilidade / Reportar erro

O SISTEMA DE PONTUAÇÃO NA ESCRITA OCIDENTAL: UMA RETROSPECTIVA

Punctuation in the Western Writing System

Resumos

Na presente retrospectiva, examinamos o sistema de pontuação na escrita ocidental, sob o ponto de vista diacrônico e sincrônico. Procuramos esclarecer como as marcas gráficas da pontuação foram desenvolvidas na história, bem como discutir o estatuto lingüístico da pontuação, enquanto sistema de signos complementares à informação alfabética de nossa escrita. Abordamos a origem da pontuação na Antigüidade Clássica, o modo como foi introduzida no sistema de escrita e como era usada pelos gregos e latinos. Enfocamos a difusão da pontuação como sistema de uso obrigatório, com o advento da imprensa na Idade Média, e seus usos da Idade Moderna aos dias de hoje. Analisamos a pontuação no sistema gráfico do português, discutindo sua complexidade e contradições, como sistema plantado na confluência dos domínios oral e escrito. A seguir, buscamos uma definição de Pontuação, revendo suas propriedades e funções, à luz de fundamentos lingüísticos. Abordamos, ainda, os aspectos gráfico-espaciais da pontuação, focalizando o problema da paginação.

Pontuação; Escrita; Sistema de pontuação; História da pontuação; Signo de pontuação


This overview article undertakes a survey of the punctuation system in the West from both diachronic and synchronic points of view. Punctuation is defined as the system of graphic signs developed through the centuries as complementary to the writing system properly speaking. An attempt is made to trace the early development to the Greeks and Latins. With invention of the printing in the Middle Ages, the diffusion of the complementary system received an additional impetus whose impact is felt even today. An examination of the Portuguese graphic system is followed by a discussion of its complexity as well as its internal contradictions. The graphic-spatial aspects of punctuation are also discussed, alongside the problem of pagination.

Punctuation; Writing; Punctuation system; Punctuation history; Punctuation sign


RETROSPECTIVA

O SISTEMA DE PONTUAÇÃO NA ESCRITA OCIDENTAL: UMA RETROSPECTIVA* * Esta retrospectiva compõe parte do capítulo teórico da Tese de Doutorado "Aquisição da Pontuação: Usos e Saberes de Crianças na Escrita de Narrativas", defendida na PUC/SP em 1994.

(Punctuation in the Western Writing System)

Iúta Lerche Vieira ROCHA

(Universidade Federal do Ceará)

ABSTRACT: This overview article undertakes a survey of the punctuation system in the West from both diachronic and synchronic points of view. Punctuation is defined as the system of graphic signs developed through the centuries as complementary to the writing system properly speaking. An attempt is made to trace the early development to the Greeks and Latins. With invention of the printing in the Middle Ages, the diffusion of the complementary system received an additional impetus whose impact is felt even today. An examination of the Portuguese graphic system is followed by a discussion of its complexity as well as its internal contradictions. The graphic-spatial aspects of punctuation are also discussed, alongside the problem of pagination.

RESUMO: Na presente retrospectiva, examinamos o sistema de pontuação na escrita ocidental, sob o ponto de vista diacrônico e sincrônico. Procuramos esclarecer como as marcas gráficas da pontuação foram desenvolvidas na história, bem como discutir o estatuto lingüístico da pontuação, enquanto sistema de signos complementares à informação alfabética de nossa escrita. Abordamos a origem da pontuação na Antigüidade Clássica, o modo como foi introduzida no sistema de escrita e como era usada pelos gregos e latinos. Enfocamos a difusão da pontuação como sistema de uso obrigatório, com o advento da imprensa na Idade Média, e seus usos da Idade Moderna aos dias de hoje. Analisamos a pontuação no sistema gráfico do português, discutindo sua complexidade e contradições, como sistema plantado na confluência dos domínios oral e escrito. A seguir, buscamos uma definição de Pontuação, revendo suas propriedades e funções, à luz de fundamentos lingüísticos. Abordamos, ainda, os aspectos gráfico-espaciais da pontuação, focalizando o problema da paginação.

Key words: Punctuation; Writing; Punctuation system; Punctuation history; Punctuation sign.

Palavras-chave: Pontuação; Escrita; Sistema de pontuação; História da pontuação; Signo de pontuação.

0. Introdução

A natureza da pontuação raramente tem sido objeto de discussão. O que a literatura em circulação oferece sobre o assunto, em geral de caráter prescritivo, ou descritivo (em menor proporção), ainda é insuficiente até para o simples usuário da escrita. Saltam à vista a flutuação e a ambigüidade que cercam o uso desses sinais gráficos. Tal situação justifica a presente retrospectiva, em que abordaremos o conhecimento da pontuação sob os pontos de vista diacrônico e sincrônico.

A perspectiva histórica pode fornecer subsídios para um melhor entendimento da flutuação contemporânea e das lacunas da instrução escolar. A abordagem lingüística atual, por sua vez, permite esclarecer melhor o âmbito de estudo da pontuação, suas propriedades, funções e estilos.

1. Aspectos diacrônicos

Do ponto de vista histórico, a pontuação não apenas foi uma aquisição tardia, mas uma lenta conquista, em muitos aspectos identificada com a evolução da própria escrita. Assim, buscar suas origens implica necessariamente refletir um pouco sobre a trajetória da escrita.

A origem da pontuação remonta aos textos sagrados, feitos para serem recitados oralmente, apresentando-se sob a forma de "indicadores para respirar" na leitura em voz alta. Mas foi apenas na Idade Média, com o surgimento da Imprensa, que a pontuação se disseminou. Sua história abrange desde os antigos escribas, ao revisor de texto medieval (profissional surgido com o advento da Imprensa); dos escritores de épocas sucessivas, aos atuais redatores e manuais de revisão dos grandes jornais, sempre intermediada pela instrução escolar. Abrange também o próprio status da linguagem em suas modalidades falada e escrita e a mudança nas concepções de autor e de leitor, privilegiadas em diferentes momentos da história.

Vejamos em mais detalhe como isto se passou, procurando reunir informações sobre diferentes épocas. O testemunho de Chafe (1987/a:6), lamentando que" nenhuma história detalhada das práticas de pontuação ainda foi escrita", anima-nos a fazê-lo.

1.1. Escrita e Pontuação na Antigüidade Clássica

Há indicações de que nas escritas silábicas havia separadores de palavras, que se perderam na escrita alfabética. Já na antigüidade clássica, escrever junto ou separado eqüivaleria a, nos dias de hoje, escolher entre letra cursiva ou letra de forma. Durante séculos, não existiram nem segmentação e nem marcas gráficas de pontuação. A escrita era contínua e o leitor era quem segmentava e pontuava o texto.

Os povos da antigüidade viam a escrita como um mero registro da fala e, ainda assim, como um registro imperfeito: uma simples "intermediária entre seqüências fônicas de partida e seqüências fônicas de chegada" (Desbordes, 1990:227). As letras eram apenas "guardiãs da voz". Deste modo, a leitura cultivada entre eles era a leitura expressiva em voz alta, baseada sobre uma notação gráfica reduzida . Entre os romanos, ninguém contestava a notória prioridade do oral e o caráter secundário da escrita, embora alguns acreditassem que, no fundo, escrita e fala eram a mesma coisa (Desbordes, 1990:p.91).

1.1.1. Os Gregos

O alfabeto grego teve início com uma seqüência de letras seguidas, sem espaços e sem qualquer marca de pontuação. O processo adotado era o de um zigue-zague: a primeira letra geralmente ia da esquerda para a direita e quando o redator chegava ao fim da linha, ele voltava da direita para a esquerda e assim sucessivamente (Halliday,1989:33).

A pontuação, por estranho que pareça, não era posta na composição, mas atribuída pelo leitor/orador na interpretação do texto, para evitar ambigüidades.

Os gregos, ao que parece, usaram vários sistemas para pontuar, alguns deles concomitantemente. Há referência a um sistema mais simples de dois termos - distinctio/subdistinctio - que marcava dois tipos de descontinuidade. A primeira indicação gráfica marcava descontinuidade entre dois enunciados completos e era usada para separar. A segunda era para subseparar ou separar levemente e mostrava descontinuidade entre partes de um enunciado, ainda incompleto (Desbordes, 1990:236).

Ao lado deste sistema, havia concorrência e confusão entre uma notação aparentemente primitiva (a diástole, indicando "disjunção", ou separação através de um tipo de vírgula) e a utilização de um sistema de pontos aparentemente homogêneo, mas que provocava muitos embaraços ((Desbordes, 1990:237). Este sistema, considerado tardio e ensinado pelos gramáticos, consistia no emprego de três pontos com duas funções diferentes: uma semântica (indicar completude maior ou menor dos enunciados) e outra prosódica (pausa para respirar). Havia o ponto no alto, indicando enunciado completo; o ponto em baixo, mostrando que o enunciado estava incompleto e o ponto no meio que correspondia à necessidade fisiológica de respirar.

Pelo visto, na história da pontuação dos gramáticos houve duas tendências evolutivas relacionadas: de um lado se multiplicavam os espaços de disjunção susceptíveis de representação gráfica, de outro se anotavam regularmente estas disjunções, de tal forma que, no sistema de oito pontos do grego Nicamor (século II d.C.) "a pontuação recupera e explicita uma análise da sintaxe que não tem mais do que longínquas relações com os problemas da leitura" (Blank, apud Desbordes, 1990:238). Desta forma, percebe-se que, com os gregos, a pontuação já ensaia os primeiros passos no terreno gramatical.

1.1.2. Os Romanos

Quanto aos latinos, embora tenham sido influenciados pelos gregos, revelaram muitas peculiaridades em seu modo de escrever. E as idéias romanas sobre a escrita merecem um comentário especial pelo papel fundamental que esta desempenhou no desenvolvimento do Império Romano, como também pelo fato de continuar nos influenciando até hoje.

Os romanos se destacaram dos demais por já conhecerem a leitura silenciosa, como atesta Cícero, e como se pode depreender a partir de notações encontradas em vários textos, para orientar o leitor (legens X tacitus e audire). Eles também já podiam decifrar os textos em scriptio continua desde o século II d.C. (provavelmente por influência etrusca). Mas não se sabia qual o critério determinante desta segmentação (gênero? grau de planejamento da escrita? audiência?)

Na prática, contudo, eles utilizavam a leitura oral e usavam simultaneamente a scriptio continua e a forma segmentada. Há vários registros da convivência desses dois tipos de leitura e de escrita entre os romanos. Paralelamente, eles também enfrentavam dificuldades na leitura, por causa da ausência ou das limitações dos signos suplementares - os que não são letras - (Desbordes, 1990:228).

Em relação à pontuação propriamente dita, parece haver informações desencontradas: umas dando conta de que ela já era razoavelmente empregada pelos copistas em casos de dificuldade de leitura, e outras dando a perceber que os textos antigos de que os gramáticos se ocupavam, ou não eram pontuados, ou não estavam bem pontuados.

De qualquer maneira, na época clássica, há alusões ao uso esporádico de uma série de sinais (o ponto, o branco, o travessão, o hífen e o traço de união), com a função de separar grupos de palavras. Ao que tudo indica, estes signos diferentes das letras eram de fato empregados, mas seu uso não era unívoco, não havendo" uma correspondência regular, sistemática e convencional entre a forma do signo e sua função" (Desbordes, 1990:228).

O signo mais comum era o ponto, acumulando diversas funções diferentes (signo polivalente). Ele podia indicar, por exemplo, que uma letra era uma abreviatura (ex: M. TVLLIVS = Marcus Tullius). Num texto teórico o ponto servia para marcar a letra de que se estava falando, concorrendo com o traço sobre a letra, para marcar a mesma função (.M ou M com traço em cima). Também servia para indicar rasura (ponto colocado em cima ou embaixo da letra), ou ainda para separar sílabas, talvez com o intuito de isolar o que se pronunciava de uma só emissão de voz (ex: MAR.CVS). Era usado, enfim, para separar as palavras (ex: MARCVS.TVLLIVS), grupos de palavras ou frases, nisto concorrendo com outros signos ou com os brancos.

Na maneira de pontuar dos romanos há, ainda, traços do sistema grego de três pontos, concomitantes com a diástole. Desbordes diz que embora não exista referência direta a este sistema (a diástole ou disjunção) também ali eram perceptíveis duas funções diferentes: reforçar/ explicitar a sintaxe, dando indicações de sentido e possibilitar a respiração (Desbordes, 1990:228). E transcreve um texto arcaico, provavelmente de autoria de Marius Victorinus, em que figuram ambas as preocupações. O autor está fazendo recomendações a seus alunos, que se ocupavam em revisar versos livres. Diz ele:

"Quando vocês pontuarem distinguir, se o enunciado é completo e o pensamento acabado, colocar entre a última letra de uma palavra e a primeira da palavra seguinte, no nível superior, um ponto diferente deste que o copista inseriu entre duas palavras. De outra parte, cada vez que uma pausa for necessária diante da seqüência assim disjunta, colocar do mesmo modo entre duas letras um diplé inverso (<)) (quer dizer um sicílico). Ao contrário, se há um hipérbato e se o pensamento se prolonga, colocar um ponto bem nítido entre duas letras, como se disse, mas ao nível inferior, e se uma pausa ainda é necessária diante de seqüência assim disjunta próxima de seu fim, por do mesmo modo um 'diplé' inverso (quer dizer um sicílico) no nível inferior."

O texto de Victorinus parece atestar, ainda, uma "simplificação operada pelos gramáticos nas considerações retóricas sobre a disjunção e a pausa".( Desbordes, 1990:228).

Outro texto fundamental citado por Desbordes é o de Quintilien sobre a pronúncia do orador que devia combinar tanto indicações de sentido, como necessidades de respiração (Desbordes, 1990:239).

Mattos e Silva (1992:3) refere-se à contribuição dos alexandrinos com "signos de pausa respiratória, além de realces materiais na composição do texto".

Antes de focalizarmos a pontuação na Idade Média, seria interessante sintetizar as inovações gradativas que foram sendo feitas no sistema de pontuação, através dos séculos, até ele atingir sua feição atual. Halliday (1989:33) enumera a ordem destas aquisições:

1o. A direção da linha foi padronizada. Os gregos adotaram a direção esquerda-direita, enquanto os fenícios optaram pelo outro sistema;

2o. Foram introduzidos os espaços entre as palavras;

3o. Foi introduzida a primeira marca de pontuação, o ponto, para separar as frases;

4o. Foram sistematicamente distingüidas as letras maiúsculas e as minúsculas, com a maiúscula tendo várias funções especiais;

5o. Surgiram símbolos especiais para indicar ligações, interpolações e omissões (hífen, parênteses, apóstrofo);

6o. Outras marcas de pontuação mais detalhadas foram acrescentadas: vírgula, dois pontos, ponto-e-vírgula, e travessão;

7o. Mais adiante símbolos para propósitos especiais entraram no sistema: aspas ("vírgulas invertidas" simples e duplas), ponto de interrogação e ponto de exclamação, os dois últimos na Idade Média (Halliday, 1989:33).

Smith (1982) também faz uma síntese interessante dos aspectos históricos, mostrando que a pontuação é arbitrária e convencional e que sua importância em geral é supervalorizada. Diz ele:

"Outrora os gregos manejaram para ler e escrever a primeira linguagem alfabética ocidental sem pontos, espaços entre palavras ou distinção de letras maiúsculas (ou melhor sem minúsculas), todos introduzidos pelos romanos ao adaptarem o sistema de escrita grego ao Latim. Outras marcas de pontuação que nos são familiares não foram usadas durante séculos e muitas outras linguagens escritas hoje funcionam sem interrogação, vírgulas, apóstrofos, maiúsculas ou parágrafos. A primeira ocorrência da palavra "pontuação" (em seu sentido gramatical) registrada em inglês foi em 1661. De qualquer modo não há nenhum registro de uma linguagem escrita causando confusão por falta de pontuação. Sem dúvida, onde a pontuação foi introduzida recentemente, por exemplo no árabe e no chinês, isso é uma conseqüência do contacto com convenções européias, talvez porque os europeus fiquem perturbados pela ausência de pontuação"(Smith', 1982:154).

1.2. A pontuação na Idade Média

Na Idade Média, a pontuação parte do padrões adotados na Antigüidade Clássica, mas esses recursos vão sendo empregados "num sentido progressivamente lógico-gramatical" (Houaiss, apud Mattos e Silva,1992). Enquanto no período clássico a pontuação se fazia "preferentemente subordinada ao perfil melódico da cadeia falada e às pausas respiratórias mais nítidas" (Houaiss, apud Mattos e Silva, 1992), na tradição medieval e depois no Renascimento já são difundidas as duas orientações para a pontuação - a lógico-gramatical e a do ritmo respiratório.

Historiando as idéias sobre pontuação, do advento da Imprensa aos nossos dias, Tournier (1980:28) refere que nos séculos XV e XVI não se encontram definições propriamente ditas da pontuação, mas listas de signos, com indicação de seus usos.

Segundo ele, a primeira obra neste sentido foi o Compendiosus dialogus de arte punctuandi, de autoria de Jean Heylin, impresso em Paris em 1471. Desta lista faziam parte: vírgula [,] (ou subdistinctio, que para Heylin era um traço reto e não curvo, oblíquo, mais espesso na base que no alto, indo do meio do ponto até a base da perna inferior das letras); colon [.] (o ponto a meia-altura); periodus [;] ; comma [.] (ou distinctio, isto é, ponto no meio com vírgula sobre-escrita); punctus interrogativus [?]. O referido autor também fazia uso de parenthesis, de uma divisão simples [/] ou dupla [//] para cortar a palavra no fim da linha.

Esses mesmos signos, segundo informa Tournier, apareceram em autores diferentes: Lefevre d'Etaples (1529), Dolet (1540), Alde Manuce Le Jeune (1549) e Calviac et Habert, apud Dolet.

A propósito de Dolet, Mattos e Silva (1992) transcreve um trecho dele extraído, ilustrando as duas orientações teóricas vigentes sobre a pontuação. Trata-se de um texto de caráter pedagógico, de 1540 (meados do século XVI), expresso em diálogo. Neste trecho o discípulo diz ao mestre:

"(...) pela maneira que se pontua, dá-se uma ajuda não só a quem lê para si mesmo, mas igualmente ao que lê em voz alta e ao mesmo tempo ao ouvinte."

E o mestre responde:

"(...) os pontos colocados adequadamente separam as partes do texto que devem estar separadas, descansam a respiração de quem lê, distinguem e mostram aos ouvintes os sentidos do enunciado."

De qualquer maneira, ao final do século XVI, os usos atuais dos principais signos estavam recém fixados, com exceção do periodus [;] (pontuação forte) e do dois-pontos (situado entre o nosso ponto-e-vírgula e o ponto).

A partir de Alde Manuce Le Jeune aparece um certo consenso nessas listas e já se percebem na terminologia utilizada as duas principais orientações de hoje: a pontuação com função semântica (respondendo à necessidade de clareza e de lógica) e a pontuação com uma função prosódica (atendendo às pausas para respirar).

Na verdade, porém, o marco decisivo na história da pontuação foi o surgimento e estabelecimento da Imprensa nos fins do século XV para o XVI. Foi a partir deste momento que a pontuação se generalizou como um sistema verdadeiramente dentro do âmbito da escrita.

A passagem do manuscrito para o imprensa constituiu uma revolução tecnológica sem precedentes na história da humanidade. A descoberta da composição e da impressão com caracteres móveis provocou a estandartização do texto escrito e a massificação da leitura visual. E com elas veio a imposição do uso de signos de pontuação de domínio público. O advento da imprensa trouxe consigo caracteres e marcas inequívocas da pontuação, fazendo aparecer, de forma explícita, uma série de funções até então ao arbítrio dos escribas e pedagogos. Agora não era mais possível ignorar a segmentação, pois que havia uma marca de espaço programada no aparato para imprimir o texto. Assim também os signos de pontuação empregados passaram a ser cunhados em metal, não deixando dúvidas quanto à sua necessidade. Outros recursos gráficos de apresentação e formato também vieram a compor o arsenal utilizado no ato de imprimir em prensa ou em prelo, dando maior legibilidade ao texto.

Este aspecto pode ser melhor entendido se pensarmos que as máquinas de escrever têm teclas especiais para certas operações: separar palavras, mudar de linha, dividir palavras, pontuar, acentuar, sublinhar etc.

Estava em marcha a imposição do público sobre o privado, tendência irreversível em nossa era (cultura de massa), que só seria igualada à automatização da escrita com o advento da informática. Guardadas as devidas proporções, a invenção do processador de texto é hoje uma ruptura tão radical com os padrões estabelecidos para escrever, quanto o foi, na época, a descoberta da Imprensa.

O mesmo impacto do surgimento da imprensa se estendeu ao aparecimento de novas profisssões (como o revisor de textos) e também foi observado na influência crescente das normas editoriais. A fonte de orientação para a escrita passou do reduto escolar para o domínio dos grandes escritores, assim como hoje em dia se deslocou para os manuais dos grandes jornais, porta de entrada das inovações, especialmente as ortográficas.

Prosseguindo nessa reflexão, é interessante observar que, nos idos do século XIX, os profissionais da Imprensa conheciam mais sobre como pontuar do que seus autores. Um livro intitulado The Printer's Manual (O Manual do Impressor), publicado em Londres em 1838 "lamenta a ignorância da maioria dos escritores na arte da pontuação e fantasia sobre um mundo em que autores movem-se em manuscritos sem nenhuma pontuação, deixando esta tarefa para a competência profissional dos compositores" (Schllingsburg, apud Chafe, 1987/b:60).

Ocorre que a noção de autor, tal como a compreendemos hoje, não existia ainda. O autor conservou um estatuto de semi-amadorismo até o século XVIII (Einsenstein, 1980:153-54, apud Castro, 1990:10). A partir dos filósofos iluministas foi que a situação evoluiu para nossa moderna noção de autor (Einsenstein, 1980:147-58).

Na Idade Média havia uma separação entre o trabalho do autor e o do escriba (do latim scriba -secretário, copista ou compositor). Raramente o autor se encarregava pessoalmente das tarefas de escrita. O mais comum era o autor ditar o texto ao escriba (Castro, 1990:7). Este "secretário" também era encarregado de arrumar e organizar os instrumentos e o material de escrita (papéis, estiletes, canetas, tinteiro, lápis etc.).

Naquela época havia centros de produção de manuscritos, os scriptoria medievais, onde os escribas trabalhavam. Supõe-se em geral que esses scriptoria se pautassem por tradições comuns e constantes no mundo letrado latino da Europa. No entanto, Mattos e Silva (1992:12), comparando manuscritos medievais portugueses, encontra orientações diferentes na sistemática de escrita adotada, contrariando a hipótese geral. Este dado nos dá mais um elemento de reflexão sobre a flutuação reinante na produção escrita daquela época.

1.3. A pontuação na Idade Moderna

Prosseguindo na história da pontuação, encontramos que nos séculos XVII e XVIII, embora ainda vigorando aquelas duas orientações, a pausal e a gramatical, era a segunda a que, de fato, importava. E mesmo parecendo que a teoria pausal era a mais difundida, surgia a idéia de que a pontuação tinha um papel lógico a desempenhar. Na verdade, as duas orientações mais se complementavam do que se opunham. Segundo Tournier (1980:29), a melhor expressão desta concepção de pontuação se encontra em Beauzee:

"A escolha da pontuação depende da proporção que é conveniente de estabelecer entre as pausas; e esta proporção depende da combinação de três princípios fundamentais: 1º a necessidade de respirar; 2º a distinção de sentidos parciais que constituem o discurso; 3º a diferença de graus de subordinação que convém a algum destes sentidos parciais no conjunto do discurso."

Estas considerações se aplicam aos signos usuais (vírgula, ponto-e-vírgula, dois-pontos, ponto). Os demais - parênteses e reticências, aspas, alínea, interrogação e exclamação - eram freqüentemente tratados à parte. Como se vê, já estamos muito perto do uso atual. A diferença maior está no dois-pontos: utilizado, entre outros, como signo de separação com um poder intermediário entre o ponto-e-vírgula e o ponto.

No século XIX apareceu pela primeira vez na França um livro inteiro dedicado à pontuação (o Traité de ponctuation de Ricquier em 1873), embora não trouxesse nada de original sobre o assunto, vindo apenas enriquecer a lista de signos existentes. Além dos citados acima foram introduzidos os seguintes signos: pontos condutores (pontilhados?), hífen ou travessão, traço de união, aspas, colchetes, alínea, apóstrofo, et caetera, asterisco, parágrafo, sublinhado, chave.

As regras para o uso de cada signo se baseavam na sintaxe. A regra para o uso do dois-pontos era pausal, embora o emprego recomendado por Ricquier fosse o mesmo de hoje.

Tournier (1980) refere-se, ainda, a Pierre Laurousse, que dedica à pontuação um capítulo de seu Grand dictionnaire universel du XIXe siècle. Para este autor, a pontuação tinha um papel lógico determinante, na dependência de suas funções respiratórias.

Nesta época, apareceram também muitos trabalhos teóricos sobre a pontuação na Inglaterra, mas sem maior importância. Entre eles se destacaram Brenan (1830) e Allardyce (1884), provavelmente o primeiro a atribuir à pontuação um papel de desambigüização (Tournier (1980:30)

1.4. A pontuação no século XX

Tournier aponta dois momentos significativos para o estudo da pontuação no século XX: um no fim dos anos 30 e outro nos anos 70.

O primeiro momento foi marcado por dois congressos - o "Congrès international de linguistique romane" (Nice, 1937) e o "Ve Congrès international des linguistes" (Bruxelas, 1939). Diz o autor que a corrente inovadora representada por Hjelmar Lindroth (no segundo congresso), influenciada pela lingüística comparativa, não se manteve e vários outros autores que se manifestaram não trouxeram inovações.

O segundo momento de reflexão sobre o tema, embora tenha partido de preocupações mais editoriais que lingüísticas ou gramaticais, foi um momento muito rico. Consistiu inicialmente em duas contribuições isoladas de L. Hirschberg (1964 e 1965), abordando a pontuação sob um ângulo notadamente científico, na perspectiva do" tratamento automático de leis sintáticas de línguas naturais escritas" (Tournier, 1980: 31). Mas, sem dúvida, a reflexão mais significativa ocorreu na França, a partir da "Mesa redonda internacional sobre a estrutura da ortografia" (janeiro/1973), sob a presidência de N. Catach. Em 1977, ela também organizou uma publicação intitulada La ponctuation, recherches historiques et actuelles, reunindo contribuições de pesquisadores do CNRS. Esta publicação, por sua vez, preparou a" Mesa redonda internacional sobre pontuação" (maio/1978), com contribuições de: N. Catach, I. Barko, A. Lorenceau, A. Husson, C. Gruaz, L. Pasque-Biedermann, J. Varloot, J. Vézin, H. Naïs, J. Mc Cleland, G. Ouy, M. Huchon, L. Védénina. R. Laufer, M. Bockelkamp, M.Burgaleta e L. Hermann, F. Weil, W.Kirsop. Tais contribuições não serão abordadas aqui, já que grande parte delas estão incluídas no item seguinte.

2. Abordagens sincrônicas

2.1. O âmbito do estudo da pontuação

A literatura corrente sobre linguagem escrita e sistemas escritos tem pouco a dizer sobre a pontuação, seja do ponto de vista histórico ou teórico. Do ponto de vista descritivo também há poucos dados sobre como os sistemas de pontuação das línguas são usados atualmente. A maioria das publicações (manuais de pontuação) se atém aos aspectos normativos. A mesma lacuna observada em relação ao sistema gráfico do português ocorre em outras línguas, como o francês (Catach, 1980:3), o inglês (Nunberg, 1991:9) e o espanhol (Ferreiro, 1991:233).

A pontuação tem sido apresentada de maneira ingênua e impressionista, sem se considerar a complexidade do assunto e as contradições que envolve. Na verdade, a contradição básica decorre das diferenças entre a linguagem oral e a linguagem escrita. Ou como diz Laufer (1980:80): "A ambigüidade do conceito de pontuação reflete a incerteza da relação entre linguagem oral e linguagem escrita".

Há um debate secular e inconcluso sobre se (ou em qual extensão) a pontuação é de fato determinada pela gramática, ou pela fonologia. Neste caso, sua função primária seria assinalar a "prosódia" (ritmo, padrões de altura, acento e hesitações) que os autores têm em mente quando escrevem e que os leitores atribuem a uma peça de escrita (Chafe, 1987 b:1).

Cabe perguntar se os aspectos prosódicos da fala estariam presentes na linguagem escrita e se seria possível "ouvir" o escrito. Ora, pensando em nossa própria experiência lendo e escrevendo, não é difícil aceitar que "a linguagem escrita atua envolvendo uma imagem mental do som" (Chafe, 1987b:1) e que a prosódia é que daria expressão a essa voz interior.

Sem intenções de adentrar o amplo e delicado terreno das relações entre o oral e o escrito, mas pretendendo fazer um recorte teórico conveniente à focalização de nosso objeto de estudo, convém elucidar um pouco a questão, recorrendo a Nunberg (1991).

a) Do ponto de vista lingüístico, durante muito tempo a escrita foi vista como um objeto desprovido de interesse teórico próprio, considerada como um modo de expressão alternativo à fala. Nesta linha de pensamento, apenas as características do texto escrito que tivessem analogias óbvias com a fala é que mereceriam ser estudadas. Talvez por esta razão as circunstâncias gráficas da linguagem escrita tenham sido quase completamente ignoradas pelos lingüistas, e eles tenham tão pouco a dizer sobre "a relação da linguagem escrita com os vários sistemas de convenções que figuram ao lado do conteúdo lexical na construção e interpretação dos textos" (Chafe, 1987 b:5).

Com efeito, esclarece o autor, num livro típico as expressões lexicais escritas aparecem juntamente com marcas de pontuação; com esquemas de dupla dimensão usados em tabelas, listas e diagramas; com variados sistemas de indexação não-linear expressos no uso de notas de rodapé ou referências textuais; com as alternâncias de formato e disposição que anunciam parágrafos, títulos, subtítulos, seções principais e outras características gráficas e figurativas.

Deste modo, caberia indagar se muitas destas convenções fazem parte da própria linguagem escrita, e como tal seriam objeto de análise lingüística; ou se pertencem a meros sistemas colaterais de representação gráfica associados à apresentação de documentos impressos.

b) Mais recentemente esta abordagem contrastiva (a que vê a escrita, enquanto objeto de estudo, atrelada à linguagem oral) cede lugar à tendência de considerar a escrita e a fala como sistemas lingüísticos distintos (Chafe, 1987 b: 1).

Ocorre que esta "separação" não se dá de forma total e perfeita, como coloca Simone (In: Orsolini & Pontecorvo, 1991:219):"Malgrado a aparência, o sistema gráfico da Língua não é uma mera reprodução do sistema fônico que 'transcreve', mas é, em parte, um sistema semiótico autônomo, dotado de uma gramática própria".

Assim, poderíamos incluir nesta abordagem que se contrapõe à abordagem contrastiva também as posições teóricas intermediárias que concebem a escrita, para fins de análise, como parcialmente independente da fala.

De qualquer modo, sabemos que há traços da fala sem correspondentes diretos na escrita, assim como existem recursos expressivos peculiares à escrita que não podem ser transferidos para a fala. Sabemos ainda que, apesar de a escrita omitir as características prosódicas da linguagem oral, ela dispõe de um recurso (a pontuação) para compensar, em parte, esta limitação (Halliday, 1989:32). Assim, embora uma das funções da pontuação diga respeito à correspondência com o oral (Catach, 1980:17), ela não é um suporte verdadeiro para as nuances da fala (Laufer, l980:79).

Na literatura pesquisada, encontramos poucas posições explícitas sobre o âmbito de estudo da pontuação, mas as colocações anteriores serão úteis à compreensão dos problemas que ela envolve, especialmente para compreender a razão das diferentes funções atribuídas a este sistema gráfico.

Ao que parece, vigoram duas posturas para interpretar a questão: uma que vê a pontuação, dentro do sistema geral da escrita, como desvinculada da fala e outra que considera a pontuação, como elemento do sistema gráfico, afeto também a influências da oralidade.

Com a primeira postura, encontramos Nunberg (1990:6) que considera a pontuação de fato como um subsistema lingüístico, portanto, a ser encarado como parte do sistema mais amplo da linguagem escrita.

Outro com a mesma posição é Tournier (apud Perrot, 1980:67), para quem a pontuação está no âmbito da escrita e não da fala, em razão de seus signos não serem pronunciados.

Smith (1982:156) também considera a pontuação exclusivamente no domínio da escrita, servindo apenas para delimitar os significados no texto e representar certas convenções da escrita, necessárias à sua consistência.

Já Halliday (1989:34) assume a segunda postura, considerando a pontuação relacionada tanto com a gramática, como com a fonologia. E diz mais: "se alguém está escrevendo um discurso conectado em inglês, a pontuação pode ser assumida (e é inconscientemente interpretada) indiferentemente como marcando unidades gramaticais ou marcando unidades prosódicas" (1989:36). É mais uma questão de estilo, de livre escolha do redator, podendo, inclusive, haver uma combinação dos dois modos de pontuar (No item 2.3., aprofundaremos os estilos de pontuar.). Para Halliday (1989:36), isto pode ocorrer perfeitamente, pois que a linguagem escrita e a linguagem oral, apesar de diferirem em muitos aspectos, têm a mesma gramática subjacente e as unidades gramaticais podem estar associadas às unidades prosódicas.

Para Catach (1980:22), a pontuação também deve ser vista na segunda perspectiva de análise: "sintaxe, pausas, entonação e sentido são absolutamente inseparáveis, mesmo se nós os distingüimos para análise". Além de ver a pontuação dentro da escrita e assumindo uma função supra-segmental, Catach a percebe como um assunto interdisciplinar, que no dizer de Gruaz (1980:8), poderia ser chamado de" ortotipográfico" . A autora considera a pontuação "um terreno de contornos fluidos, que parece limitar-se com os domínios da tipografia, da escritura e da língua" (Gruaz ,1980:.6).

Para ela, o estudo da pontuação como um objeto estilístico, editorial ou sociológico ainda não é o bastante. Valeria a pena que os lingüistas também assumissem esta preocupação.

Entendendo a pontuação dentro deste âmbito, foi que a autora organizou uma Mesa-Redonda Internacional no Centro Pluridisciplinar de Ivry, na França, em maio de 1978, para discutir a pontuação com diferentes especialistas - historiadores, críticos literários, lingüistas, editores e bibliógrafos.

Os Anais deste raro encontro resultaram na clássica publicação sobre pontuação editada pela Larousse - Langue Française 45. Sem ser uma abordagem histórica propriamente dita, esta publicação focaliza os signos de pontuação, os brancos e a paginação como parte essencial da própria história do livro, dando uma idéia de toda a riqueza de aspectos das técnicas, das artes e da cultura de séculos passados.

2.2. Propriedades e funções da pontuação: em busca de uma definição

Já vimos que o sistema gráfico, como um sistema semiótico autônomo, embora de natureza distinta do sistema primário da língua - o fonológico - aproxima-se dele, ainda que de forma "imperfeita". Assim sendo, alguns elementos do sistema gráfico, como no caso a pontuação, são dotados de funções diversas.

Em outras palavras, a pontuação é definida, em geral, a partir das propriedades e funções que este conjunto de signos assume. Mas como são várias propriedades e distintas funções, torna-se difícil uma sistematização lógica da pontuação, além de haver o risco de se proporem definições ambíguas, como bem adverte Tournier (apud Perrot, 1980:67).

Nossa questão central aqui é, pois, discutir qual o estatuto lingüístico dos signos de pontuação, sabendo, de antemão, que não é fácil caracterizar o conjunto de aspectos gráficos que o termo pontuação abrange.

2.2.1. Propriedades

Não é por acaso que falamos de "sinais" de pontuação. Assim como os demais signos lingüísticos, eles são constituídos de um significante (o pontuante) e um significado (o pontuado), e a experiência mostra que o mesmo significante (a maiúscula, por exemplo) pode ter vários significados - começo de frase, nome próprio, valorização etc. (Tournier, 1980:36).

A propriedade fundamental da pontuação é o fato de não ser pronunciada (A): "um signo de pontuação é um signo gráfico discreto e sem correspondência fonêmica" (Perrot, 1980:67).

Ao lado desta propriedade em negativo, os signos de pontuação, ao contrário dos grafemas, têm uma significação, o que lhes confere um valor ideográfico (B). Vale ressaltar que esta segunda propriedade é outro elemento complicador de sua aquisição, visto que mesmo sendo diretamente portadores de sentido não implica que a única função dos signos de pontuação seja a de representar as pausas e a entonação.

Outra propriedade dos signos de pontuação, comum e básica aos signos lingüísticos em geral é a de funcionarem sobre um eixo sintagmático e um paradigmático (C), embora se trate de uma sintagmática dos segmentos delimitados (Perrot, 1980:69).

No caso, sua sintagmática não se apresenta como um sistema de combinações entre os signos de pontuação para formarem unidades de nível superior, mas assume uma função delimitadora em níveis gradativos. Em outras palavras, eles funcionam de modo delimitativo, apresentando-se nas extremidades de seqüências gráficas: membros de frases dentro de frases; frases dentro de parágrafos, parágrafos dentro de textos. Já o caráter paradigmático dos signos de pontuação se revela na possibilidade de o usuário poder selecionar um entre vários signos coexistentes.

Ao lado de signos de pontuação obrigatórios (como o ponto final ou a interrogação), temos signos alternativos, que em certos contextos, especialmente marcando efeitos da enunciação, podem ser substituídos por outros (como travessões por parênteses ou por vírgulas). Aliás, essa grande flutuação ou liberdade no uso de alguns sinais é um dos aspectos mais característicos da pontuação e que muito interfere na habilidade de pontuar. Ela tem a ver não apenas com o funcionamento paradigmático dos signos de pontuação, mas também, e muito, com a interferência da prosódia da linguagem falada na escrita. (Detalharemos mais estes aspectos no item 2.3.)

Halliday (1989:35) faz algumas considerações sobre a variação a que alguns sinais de pontuação estão sujeitos no uso. Ele observa que, na prática, não há problema no emprego das marcas de status (p/funções discursivas [.] [?] [!][" "], detalhadas em 2.2.4).

Primeiramente, há muitos registros ou variedades funcionais da escrita onde só aparecem declarações (sem outras funções discursivas, discurso direto ou citação) e, portanto, aí só são requeridos pontos finais. Por outro lado, nos registros de outra natureza, como num diálogo dramático ou numa narrativa de ficção, há pouca incerteza no uso dos sinais (Há, por exemplo, um consenso sobre o que seja uma pergunta.).

A principal variação é no uso do ponto de exclamação, em que alguns redatores são mais livres que outros; e na distinção entre aspas simples e duplas.

Há alguma dúvida sobre a pontuação do discurso indireto livre, mas segundo Halliday, a preferência parece ser pela pontuação do ponto de vista do autor.

Algumas dificuldades aparecem nas marcas de limite - [#] [.] [:] [,] [;] (também detalhadas em 2.2/ item d.) A imprecisão no uso desses sinais decorre da variação sistemática que os atinge. Segundo Halliday, para entender isso, seria preciso perguntar, em primeiro lugar, como elas foram introduzidas no sistema de escrita (Halliday, 1989:36).

Um outro aspecto surpreendente na pontuação é que, ao contrário da sintaxe verbal que avança linearmente, elemento por elemento, um só signo pode se comportar como uma espécie de "suprasegmento", capaz de atribuir a uma vasta porção do texto valores e nuances variados (D): exclamação, interrogação, ironia, ênfase, dúvida, negação total do que vinha sendo dito, insinuação, distanciamento, citação numa citação, discurso direto num discurso indireto ou numa narração, cortes do assunto, mudanças de foco ou sinfonia de muitas vozes. Essas variações podem ser visualizadas, por exemplo, num texto de teatro, onde com alguns traços e pontos sobre uma página plana podem-se criar duas dimensões. Mas foi com o romance que a pontuação atingiu uma dimensão maior, permitindo animar e atualizar, opondo a narrativa à fala das personagens.

O grande mistério do ato de pontuar, que é também um mistério da linguagem em situação, é basicamente, sua função de "colocar em cena" (E), como aponta Catach (1980:5): "Comparável a uma partitura musical com suas notas e seus silêncios, os signos de pontuação são a voz e o gesto, eles dão uma profundidade de campo à palavra escrita, atestando que falamos com outras coisas além das palavras". Neste sentido, pode-se dizer que a pontuação nos permite o repouso próprio de todas as linguagens, assim como manifestar na escrita uma verdadeira expressão corporal, revelando ou ocultando nossas intenções.

2.2.2. Leis de ocorrência da pontuação

Encontramos em Tournier (1980:39) a especificação de três leis que regem a ocorrência dos sinais de pontuação no texto escrito: uma principal e duas secundárias.

a) Lei da exclusão (lei geral): Certos pontuantes se excluem mutuamente, isto é, mesmo que no discurso haja vários pontuados a marcar, um só pontuante se realiza e uma só vez. Ex.: Na frase "A.N.D.E.S. e C.U.T. decidem entrar em greve com os metalúrgicos do A.B.C.", a maiúscula de ANDES exclui a maiúscula do começo de frase porque não se pode afetar o "a" inicial de duas maiúsculas.

b) Lei da neutralização (lei secundária): Se em um ponto do discurso vários pontuados devem ser marcados, e não o podem ser senão por um mesmo pontuante, este só se realiza uma vez. Ex.: Na mesma frase do exemplo de A, temos três pontuantes presentes, todos eles geralmente assinalados pela maiúscula (o começo de frase, a sigla e o nome próprio), no entanto, a maiúscula só se realiza uma vez. O mesmo ocorre com o ponto que marca a sigla e o final da frase.

c) Lei da absorção (lei secundária): Existem sinais que não podem aparecer um ao lado do outro, mesmo que comportem pontuantes e pontuados diferentes. Em tal caso, um só pontuante se realiza e encarrega-se então de seu próprio pontuado e dos outros. Ex.: Comparando as frases "Os estudantes, em março, já estão em aulas." (a) e "Em março, os estudantes já estão em aulas." (b), verificamos que em (b) a maiúscula do começo da frase excluiu uma das vírgulas, absorvendo o pontuado "limite de grupo circunstancial". Isso também pode ser verificado num outro exemplo, do francês - "chef-d'oeuvre" - em que o apóstrofo excluiu o traço de união. Nestes casos são impossíveis" chef-d'-oeuvre" ou "chef-d’-oeuvre".

2.2.3. O pontema no sistema gráfico: signos de pontuação X outros signos gráficos

Dizer que a pontuação é um conjunto de signos gráficos nos coloca, genericamente, diante de um conjunto muito amplo e variado. É preciso delimitar os sinais de pontuação, separando-os de outras unidades observáveis da escrita, assim como estabelecer distinções entre os próprios sinais usados para pontuar (Esta segunda delimitação será feita adiante, na tentativa de apontar algumas categorizações para classificar os signos de pontuação.).

Para Catach (1980:21), a unidade de duas faces constituída pelo signo material e sua função pode ser chamada de "pontema". Vejamos então como o pontema se define no sistema gráfico. Segundo a autora, os pontemas são uma classe particular de grafemas. Deste modo, ela parte de considerações sobre o próprio grafema, tomando emprestado termos de Hjelmslev, para a partir dele caracterizar os pontemas.

Catach explica que o grafema (constituído de combinações de letras) tem uma dupla articulação: é um significante remetendo a um significante, isto é, um" cenema", que é o papel de base em uma escritura alfabética. Mas pode ser ao mesmo tempo ou separadamente um significante de um significado, isto é um" plerema". Os primeiros são signos vazios, significantes de significantes, ou seja, signos de uma escritura fonética ou fonológica, que só visam a fornecer o equivalente dos fonemas, elementos neutros de formação das palavras. Já os" pleremas" são signos plenos, possuindo por si só um significante e um significado, como os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses.

A partir destas colocações, o signo de pontuação (pontema) pode ser melhor caracterizado dentro do sistema gráfico, como sendo:

Uma classe particular de grafemas, essencialmente pleremas (puros ideogramas ou os mais plerêmicos dos grafemas), que guardam afinidades com os morfogramas (transcrição dos morfemas), derivados do oral, aos quais se atribuem funções de pausa e de entonação.

Segundo Tournier (1980:35), os signos de pontuação distinguem-se de: símbolos científicos e técnicos, siglas, abreviações, algarismos e números. Ao contrário destes signos, os sinais de pontuação não remetem simultaneamente a outros significantes escritos mais elaborados, a significantes orais e significados. (Exs.: H2O remete ao significante escrito "água", aos significantes orais [agadoyzó] ou [agwa] e ao significado 'água' ; da mesma forma "Sr." remete a Senhor, [señô] e a "senhor".)

Há analogias entre os sinais de pontuação e os" morfogramas" (que transcrevem os morfemas). Da mesma forma que um "r" pode marcar o infinitivo verbal, um par de vírgulas pode marcar uma aposição. Assim também se o morfema "s" de plural pode corresponder a um fonema (com diferentes realizações), os sinais de pontuação podem corresponder a fenômenos prosódicos (interrogação, pausa etc., às vezes, produzindo efeitos diferentes)).

Os sinais de pontuação também têm algumas afinidades com a palavra. Mesmo não tendo um conteúdo semântico da mesma ordem, são comparáveis a ela por constituirem unidades discretas (F). Só que esses sinais não são decomponíveis em unidades de ordem inferior a eles próprios.

Em relação à discretização, estes signos se opõem aos fenômenos prosódicos (embora a eles também seja atribuído o papel de os representar). Enquanto estes são contínuos (uma pausa pode ser mais ou menos longa), os signos de pontuação não têm este atributo. Uma vírgula não pode ser maior ou menor. Ou será uma vírgula, ou outro sinal. Um meio termo é impossível. Por isso, na escrita formal esses signos também não aceitam procedimentos gráficos de transcrição analógica (como nos quadrinhos, o tamanho das letras proporcional à intensidade da voz do locutor).

Além disso, o fato dos sinais de pontuação constituirem unidades discretas permite que eles aceitem o branco, o apóstrofo, as oposições maiúscula/minúscula, negrito/itálico/romano, título/subtítulo/texto corrente, grifo-não grifo etc.

Ao final de suas considerações, Tournier (1980: 36) propõe, a seguinte definição:

A pontuação é o conjunto dos grafemas puramente plerêmicos, não decomponíveis em unidades de ordem inferior e de natureza discreta.

2.2.4. Funções e categorias para classificação da pontuação

Detalharemos algumas propostas de classificação de maior abrangência e funcionalidade, focalizando diferentes funções da pontuação, segundo a sistematização de Halliday (1989), Catach (1980) e Tournier (1980), respectivamente. Complementaremos nosso quadro de referência, mencionando outras posições, embora esses autores não tenham chegado a formalizar propriamente uma classificação para a pontuação.

Já sabemos que os sinais de pontuação desempenham diferentes funções. Assim, eles também podem ser classificados de várias maneiras.

Perrot (l980:70), por exemplo, observa que "os valores atribuídos aos signos de pontuação são de ordens diversas, no sentido de que a relação entre o segmento delimitado pelo signo de pontuação e o conjunto onde ele aparece não é sempre da mesma natureza, nem se refere à mesma ordem de significações". A título de exemplo, comparemos as razões do uso da vírgula nos seguintes enunciados:" Inquieto, ele apressa o passo" (A) e "O caso, disse ele, é delicado"(B).

Em A, a pontuação tem a função sintática de delimitar o constituinte representado pelo adjetivo "inquieto". Já em B, a pontuação está manifestando uma indicação de natureza diferente da anterior: trata-se de marcar a oposição entre duas posições enunciativas diferentes - o discurso do narrador (não marcado/pontuação zero) versus a fala de outros (citação marcada por aspas, precedida pela expressão dicendi, entre vírgulas).

Halliday (1989:33) atribui aos signos de pontuação três funções gerais:

A primeira delas é marcar limites ou fronteiras. (A gramática de cada língua está organizada numa hierarquia de unidades de diferentes tamanhos: frases, orações, sintagmas, palavras e morfemas).

Historicamente, a marca de limite mais distintiva, palavras e frases, foi a primeira a ser introduzida: palavras marcadas por espaços (1), frases por pontos finais (2). A seguir, foram introduzidos no sistema de escrita os dois pontos (3) e a vírgula (4). Para limites mais frágeis se usa a vírgula e para limites mais fortes, os dois pontos. Ambos podem ser usados para separar orações, a diferença servindo para indicar parênteses internos. A vírgula também é usada para separar orações, e até palavras, dependendo das circunstâncias, como num pensamento posterior, ou numa lista. Uma distinção muito tardia foi feita entre dois pontos (3) e ponto-e-vírgula (5), tendo o primeiro uma especial implicação catafórica (referência para diante).

A segunda função dos símbolos, para Halliday, é marcar" status", ou seja, indicar sua função discursiva. Para ele, não é suficiente mostrar que uma frase terminou; também é importante indicar sua função - se é uma declaração, uma interrogação ou outra coisa (Halliday, 1989:33).

Deste modo, é possível contrastar: (1) o ponto final, para declarações; (2) o ponto de interrogação, para perguntas; (3) e o ponto de exclamação, usado para diversas funções da fala incluindo comandos, sugestões, ofertas, exclamações, chamados e saudações. Como sabemos, o falante também troca bens e serviços (como expressam as frases: Eu lhe ajudarei! Sejamos amigos! Vá para casa!); expressa sua própria atitude (como a exclamação "Que bagunça!"); ou estabelece contato social (chamados e saudações, como por exemplo, "Paulo!" "Ei! Aqui!").

Do ponto de vista histórico, os signos de interrogação e de exclamação só foram introduzidos na Idade Média. O primeiro era representado pela letra q, a letra inicial da palavra latina quaestio (questão) ao contrário e colocada sobre o fim. O segundo (a exclamação) era um i sobre um o, representando a exclamação latina io na forma de um símbolo isolado.

As marcas de citação, ou aspas, também são símbolos de status (4). Elas são usadas para atribuir alguma parte do texto a alguém que não o autor, para citar (por exemplo, uma palavra ou frase dita por um personagem da narrativa ou para realçar uma palavra especial como um termo técnico). Existem aspas simples e duplas e, segundo Halliday, elas são os signos de pontuação de uso menos definido. Escritores modernos usam a versão dupla para uma citação dentro de outra citação. Outra possibilidade encontrada é o uso de aspas duplas para palavras ditas e de aspas simples para pensamentos. Mas os dois tipos freqüentemente são usados um pelo outro. (Para um maior detalhamento do uso das aspas, ver adiante os critérios de classificação de Tournier (1980), com base na função delimitadora - categoria 2, item b.2 e categoria 4.).

A pontuação tem ainda uma terceira função, não menos importante, difícil de generalizar e que talvez possa ser vagamente referida como sendo a função de marcar relações ((Halliday, 1989:.34). Nesta função estão incluídos:

(1) o hífen, que sinaliza um laço através de um espaço (seja um espaço de palavra ou final de linha), mostrando que duas palavras devem ser tomadas como um conjunto, ou que duas letras estão separadas por uma quebra de linha;

(2) o travessão, que sinaliza que o elemento seguinte deve ser considerado como uma aposição ao precedente;

(3) o parêntese, que indica que o elemento incluído é um tipo de sub-rotina, um adendo ao aspecto principal da frase ou de um termo dela;

(4) o apóstrofo, que significa que uma letra foi omitida (para reconhecer uma variante informal, ou como no caso do inglês para marcar a negativa (didn't) e que um nome é possessivo (Mary's book).

Catach compreende por signos de pontuação uma dezena de elementos gráficos superpostos ao texto: vírgula, ponto-e-vírgula, pontos (final, de exclamação, de interrogação, de suspensão) e os chamados sinais de enunciação (dois-pontos, aspas, travessões, parênteses, colchetes).

Ela também aponta três funções gerais para estes signos (1980:17):

1a) Organização sintática - É a função responsável pela união e separação das partes do discurso, em todos os níveis (junção e disjunção, inclusão e exclusão, dependência e independência, distinção e hierarquização dos planos do discurso). Exemplos, utilizando a vírgula:

- junção: esse, este, aquele lá (= e);

- disjunção: este, não aquela (= mas);

- inclusão/disjunção: isto que é verdadeiro, aquilo que é falso

(inclusão por ausência de sinal, oposição entre os dois sintagmas

pela presença);

- hierarquização do plano do discurso: Sim, disse ele, é verdade

(dois enunciados diferentes).

A maior parte dos pontemas têm uma função separadora e organizadora. O valor dos sinais essencialmente separadores é nitidamente crescente: vírgula (ou branco); ponto-e-vírgula (ou dois-pontos); ponto (interrogativo, exclamativo, suspensivo, final); branco da alínea etc.

Também os sinais de enunciação formam um subsistema separador, marcando um distanciamento cada vez maior dos diversos planos do discurso. Aqui a separação se faz, não entre os segmentos da cadeia sintática principal (segmentos intra-sintáticos), mas entre os locutores ou pontos de vista, presentes na situação de comunicação (segmentos intersintáticos): incisos (frase que corta outra, interrompendo-lhe o sentido), parênteses, colchetes, dois-pontos, aspas, travessão, alíneas (linha escrita que marca a abertura de um novo parágrafo), uso de itálico etc.

O branco, a vírgula e o ponto aparecem bem como as unidades de base menos marcadas desta função separadora. Eles servem tanto para os segmentos intra como intersintáticos. Assim, nos incisos, a vírgula dupla se aproxima dos parênteses e dos travessões como sinal de enunciação. Aliás, historicamente, durante muito tempo ela foi suficiente para introduzir um discurso direto ou uma citação.

2a) Correspondência com o oral - É a função que representa a indicação das pausas, do ritmo, da linha melódica, da entonação, daquilo que chamamos "supra-segmental" (fenômenos não marcados na escrita de outra forma e que seriam a "terceira articulação da língua"). É por causa desta função que o efeito dos sinais de pontuação não é "pontual", mas contínuo, envolvendo toda uma frase ou um segmento de frase. Exemplos utilizando a vírgula:

-Tu vens, ou me aborrecerei (ascendente, depois descendente).

- É verdade, disse ele (tom baixo contínuo para o segundo enunciador).

Como vimos na abordagem histórica, a função primitiva dos sinais de pontuação era a de assinalar os lugares em que se poderia respirar durante a leitura em voz alta (praticamente a única forma de leitura existente). Entre os gramáticos do século XVIII, havia um consenso de que esta era a razão básica da pontuação. Com o desenvolvimento da leitura visual, esta função passa a ser menos percebida pelo leitor. Mas ela ainda é bem nítida para os escritores, em oposição à pontuação lógica. É provável que, ao escreverem, eles experienciem a "imagem da audiência", com entonações específicas, acentos, pausas, ritmos e qualidades de voz, ainda que a escrita disponha de poucos meios para mostrar estas características (Chafe, 1987/a:2). Para este autor, trata-se da "prosódia encoberta da linguagem escrita", muito clara para o escritor ou redator reflexivo.

A este respeito, Catach comprovou, numa enquete realizada com 45 escritores franceses contemporâneos, que a grande maioria se prende à tradição oral da pontuação. Apenas 7 dos entrevistados revelaram seguir uma pontuação gramatical, baseada na sintaxe.

3a) Suplementação semântica - Esta função pode ser ou não redundante em relação à informação alfabética. Pode também complementar ou suplementar as unidades de primeira articulação, morfemáticas, lexicais ou sintáticas.

A riqueza e a variedade ideovisuais da pontuação atual continua aumentando com o desenvolvimento e a padronização dos impressos. Símbolos de elementos não repetidos, substitutos de morfemas, marcando relativas explicativas ou a estruturação dos planos do discurso, opondo o mais ao menos importante, separando o principal do secundário, o "eu" do "tu" ou "ele", o tema do rema, muito há a explorar a respeito da pontuação (Chafe, 1987/a:24).

Alguns casos incluídos na função de complemento semântico são os seguintes:

* elemento não repetido: Eu tenho isto, e ele, aquilo.

* substituto de morfema: Não fui, estava chovendo (= porque).

* relativa explicativa: Os viajantes, que tinham fome, pediram para comer. (Opõe-se a:" Os viajantes que tinham fome pediram para comer.")

* estruturação dos planos do discurso (os parênteses, a vírgula dupla, os sinais de enunciação).

* separação "eu"/"ele" e hierarquização dos planos do discurso: Ele disse: "Seu nome" (diferente de: Ele disse seu nome).

Uma outra proposta de categorias para a classificação da pontuação é a de Tournier (1980:36), também tomando por base as propriedades e funções da pontuação, e se apoiando em Catach.

Quanto à independência dos sinais na seqüência gráfica, o autor distingue os sinais ligados (ou associados) dos sinais autônomos. Os primeiros só existem na medida em que afetam outros signos gráficos (letras, símbolos e mesmo sinais de pontuação). Estão, neste caso, as maiúsculas, os diferentes tipos de caracteres tipográficos, o sublinhado etc. Os segundos existem de maneira independente, dispensando apoio de outros signos gráficos. São os sinais mais conhecidos: ponto, vírgula, travessão etc.

Quanto ao raio de ação dos sinais de pontuação, eles podem ser sinais pontuais ou sinais lineares. Os pontuais se colocam em um ponto da cadeia dos signos gráficos; os lineares se manifestam sobre toda a porção da cadeia gráfica assinalada. Assim, ponto, vírgula, maiúscula de nome próprio e de começo de frase seriam sinais pontuais; e itálico, negrito, sublinhado seriam lineares. O ponto de interrogação, mesmo afetando toda uma frase, só se realiza ao seu final e é pontual.

Tournier propõe, ainda, outra classificação baseada na função básica dos sinais de pontuação, que é delimitar as seqüências do escrito em níveis sucessivos: palavras gráficas; frases e partes de frases; parágrafos e capítulos; sinalização semântica ou extralingüística (Tournier, 1980:37). São as seguintes as categorias propostas:

Categoria 1 - a pontuação da palavra: Três sinais são utilizados para marcar os limites das palavras: o branco, o apóstrofo e o traço de união. Os outros sinais pontuais (que podem ser colocados entre duas palavras) só podem aparecer onde há branco.

Categoria 2 - a pontuação da frase:

a) Os sinais que delimitam a frase: de um lado está a maiúscula da frase, de outro, os diferentes pontos (interrogativo, exclamativo, final, reticências) do final de frase (estes podendo desempenhar outras funções em outros contextos).

b) Os sinais que delimitam as partes da frase: são todos que podem aparecer entre o começo (a maiúscula) e o final da frase (o ponto) - vírgula, dois-pontos, ponto-e-vírgula, aspas, parênteses, colchetes:

b1) os sinais que delimitam os elementos constitutivos da frase (sintagmas):

* dois-pontos (em geral anunciam uma seqüência de natureza referente àquilo que o precede - enumeração, explicação, citação etc.)

* vírgula

* ponto-e-vírgula (coloca-se entre duas seqüências de ordem superior àquelas que delimitam as vírgulas).

b.2) os sinais que permitem a interrupção da progressão normal da frase para nela incluir uma frase (ou várias), ou uma parte da frase (fazer inserções): são as aspas, os parênteses e os colchetes, o travessão duplo e a vírgula dupla. Esta categoria também se aplica à antecedente, só que chama a atenção para o fato de que, se o elemento inserido for retirado, a frase não se torna agramatical, como por exemplo: Ela sabia, é bem verdade, que não havia esperanças. X Ela sabia que não havia esperanças.

As aspas têm um status especial, fazendo com que qualquer tipo de seqüência possa tornar-se um elemento constitutivo. Assim, uma frase inteira pode tornar-se um objeto direto ou um sujeito: "Eram os Deuses Astronautas" foi filmado recentemente. Esta propriedade das aspas de poder afetar qualquer seqüência de palavras no interior de uma frase dada não é compartilhada com os outros sinais do grupo b2. A vírgula, por sua vez, pode pertencer tanto ao grupo b.1, como ao b.2.

Categoria 3 - a pontuação metafrástica: todos os sinais que marcam os limites de seqüências de ordem superior à frase . Em geral estes sinais referem-se à utilização do espaço em branco da página: alínea e reforço entre parágrafos, a mudança de página entre partes importantes do texto; espaços entre títulos e subtítulos e, na falta de um melhor enquadramento, também o traço de divisão.

Categoria 4 - a pontuação especificadora: os sinais que assinalam certas palavras ou seqüências, para indicar ao leitor uma característica particular sua. Figuram nesta categoria a maior parte dos sinais associados: jogo de diferentes caracteres, sublinhamento, certo tipo de maiúsculas (a que assinala nomes próprios e a que coloca a palavra em evidência) e as aspas (indicando que a seqüência que elas afetam foi "emprestada" ao texto em questão).

O autor assinala que não existem funções - limitadora ou especificadora - puras. As aspas, por exemplo, preenchem as duas funções, indicando tanto os limites como o fato de a passagem ter sido emprestada ao texto.

Até aqui, apresentamos em detalhe as propostas de classificação de Halliday, Catach e Tournier. Deixando à parte os inúmeros manuais prescritivos de pontuação, complementaremos nosso quadro de referência geral, mencionando, ainda, outras posições, embora não tão específicas quanto às categorizações apresentadas anteriormente.

Baker (1985), por exemplo, fala de dois sistemas de pontuação: o sistema fechado (rígido), que manifesta a estrutura gramatical da frase e o sistema aberto (livre), que tenta captar a expressividade da fala.

Smith (1982:156) enfatiza a relação da pontuação com a significação e a gramática, desconsiderando os sons da fala. Para ele, a pontuação marca como o sentido evolui no texto, permitindo conectar e encaixar significados. Ao lado da pontuação que representa significados, ele considera a pontuação que representa convenções da escrita necessárias para manter sua consistência (a da escrita).

Chafe (1987/a) defende, como função principal da pontuação, a função prosódica, isto é, dizer alguma coisa sobre as intenções do autor em relação à prosódia da voz interior (ouvida pelo autor quando está compondo o texto).

Hartwell e Bentley (1982) vêem a pontuação conectando frases, separando modificadores livres e conectando itens em séries.

Laufer (1980) propõe uma sistematização dos sinais a partir do ponto - o símbolo clássico. Aponta valores expressivos e valores rítmicos do ponto, complementando-os com signos subsidiários (variantes do ponto e da vírgula).

Cunha (1981) considera que pontuar é sinalizar um texto de forma gramatical e expressiva, distinguindo sinais que marcam pausa de sinais que marcam melodia.

Depois de examinar todas essas propostas de sistematização, parece-nos importante enfatizar alguns pontos (que nos remeterão às propriedades dos signos, já discutidas anteriormente).

O primeiro ponto a se destacar é o fato de não haver uma biunivocidade perfeita entre tipo de pontuação e função. Assim, os mesmos sinais podem assumir valores diferentes, desempenhando mais de uma função. Em Halliday, por exemplo, vimos que o ponto tanto marca limite, como status e que as aspas, por servirem para criar diferentes efeitos expressivos, são os sinais de uso menos definido.

Parece que quanto mais funções os sinais acumulam, mais difícil se torna seu uso. Halliday lembra que as marcas de status não oferecem problemas ao usuário. Já os sinais polivalentes, como é o caso da vírgula, são os de emprego mais problemático. Catach refere que a vírgula dupla pode ser permutada com os parênteses e com os travessões duplos e que, durante muito tempo, ela foi suficiente para introduzir um trecho em discurso direto ou uma citação. Tournier, por sua vez, considera que, dentro da pontuação da frase, a vírgula tanto figura entre os sinais que delimitam partes da frase, como serve para sinalizar inserções.

Finalmente, vale frisar que as funções indicadas pela maioria dos autores afetam todos os níveis do discurso, podendo reforçá-las semanticamente. Além de organizarem sintaticamente o texto escrito, podem sinalizar diferentes significados. (Em Tournier, esta última é a função especificadora).

2.2.5. Pontuação e paginação

Os aspectos gráfico-espaciais da pontuação também merecem ser abordados. Vejamos agora como ele é concebido por um redator proficiente ou por um editor.

Inicialmente, deveríamos nos perguntar, o que resta na página escrita na ausência de um signo de pontuação. Ora, um branco... Este branco, contudo, já é um signo, o mais primitivo e essencial de todos, um "signo em negativo". Assim como uma foto em preto e branco, a página impressa se inscreve em nosso campo visual por uma série de contrastes entre o implícito e o explícito (Catach, 1980:18).

Na verdade, um dos problemas da linguagem escrita está na diferença entre o audível e o visível, nesta necessidade de passar de um meio temporal (o da fala), para um meio espacial. Assim, apesar de parecer simples - o texto moderno se reduz à escritura num espaço gráfico que está implícito - é preciso ter em conta que este espaço não é verbal, mas visual.

Catach (1980:18) explica que o espaço gráfico é perfeitamente analisável por um profissional, compreendendo unidades de três ordens de grandeza - o nível das palavras, o nível da frase e o nível do texto.

No nível das palavras, os espaços interliterais se opõem aos espaços (maiores) entre as palavras; a ausência de espaço por apóstrofo e o traço de união (léxico) se opõem ao espaço disposto depois dos signos de pontuação sintática; o traço de divisão marca que a palavra não está terminada.

No nível da frase, a maiúscula marca o início da frase (só a frase ou o início do parágrafo), como o ponto marca o "fim", mas um fim provisório, pois que se opõe à passagem da linha para a alínea ou a passagem da página para um novo capítulo.

No terceiro nível, que cerca o texto e o ultrapassa e que, em geral, escapa ao próprio autor, temos: o agenciamento geral do livro e dos capítulos, justificação, margens, títulos, intertítulos, disposição de entrelinhas, apelo de notas, oposição de capítulos e de tipos de caracteres, procedimentos para pôr em relevo (destaque), determinação do formato, capa, chamada de coleção, cores, ilustrações etc.

Assim, em relação ao espaço gráfico, definido nesses níveis, podemos dizer o seguinte: Os primeiros tipos de signos (nível da palavra e da frase) apresentam uma série de características que os opõem mais ou menos notadamente ao segundo tipo de signos (nível do parágrafo). Eles (os do nível da palavra e da frase) são interiores ao texto, em geral explícitos, discretos, formam um sistema e, apesar de tudo, dependem de uma grande habilidade do autor. Em geral, eles também são comuns ao manuscrito e ao impresso e originam-se da mensagem lingüística. Contudo, ainda pode haver alguma coisa imprecisa entre pontuação e paginação.

Quanto aos aspectos gráfico-espaciais dos signos enumerados, Catach considera mais importantes: a pontuação das palavras (o branco da palavra, o apóstrofo - de muita funcionalidade no francês - o traço de união e o signo de divisão de palavras); pelo menos uma parte da pontuação do texto (as alíneas, os afastamentos, os parágrafos); o uso de maiúsculas e certas alternâncias clássicas de caracteres tipográficos.

Todos esses aspectos mencionados dizem respeito aos usos manuscritos e tipográficos da escrita. E o que dizer da escrita eletrônica? Considerando que o instrumento de escrita e o modo como ele é usado influenciam a construção do texto (Castro, 1990:42), é de supor que a automatização da escrita altere totalmente nossa concepção de redigir, repercutindo especialmente na maneira de lidar com o espaço gráfico. É provável que estes aspectos, evidenciados nos programas de computador postos à disposição do usuário, terminem até por excluir tais preocupações do redator. Ou quem sabe... acentuá-las?

Ao final dessa reflexão lingüística, consideramos pertinente a definição de pontuação proposta por Catach (1980:21):

"Conjunto de signos visuais de organização e de apresentação que acompanham o texto escrito, interiores ao texto e comuns ao manuscrito e ao impresso; a pontuação compreende variadas classes de signos gráficos discretos, formando um sistema, completando ou suplementando a informação alfabética".

(Recebido em 07/08/1995. Aprovado em 19/01/1996).

Referências Bibliográficas

BACKER, Russel (1985:101-7) How to Punctuate. In: FUES, Billings S.Jr. How to Use the Power of the Printed Word. Garden City, New York: Auchor Press/Doubleday.

CASTRO, Ivo (1990) Enquanto os escritores escreverem... In: IX Congresso Internacional da Associação de Lingüística e Filologia da América Latina, UNICAMP/Campinas, 6 a 10 de agosto de 1990, 64 p.

CATACH, Nina (février 1980) La Ponctuation. In: Langue Française 45: 16-27. Paris: Larousse.

CHAFE, Wallace (October 1987 a) Punctuation and the Prosody of Written Language. In: Technical Report 11, Berkeley: University of California and, Pittsburgh: Carnegie Mellon University, Center for the Study of Writing, 32 p.

_______________ (November, 1987b) What good is punctuation? In: Occasional Paper 2 (To appear in the National Writing Project/ Center for the Study of Writing Quarterly (in press), Berkeley: University of California and Pittsburgh: Carnegie Mellon University, 6 p.

CUNHA, Celso (1981) Gramática de Base. Rio de Janeiro: Fename.

DANIELEWICZ, Jane and CHAFE, Wallace (1985:213-26) How 'normal' speaking leads to 'erroneous' punctuating. In: FREEDMAN, Sarah Warshauer (ed.) The Acquisition of Written Language: Response and Revision. Berkeley: University of California, Norwood/New Jersey: Ablex Publishing Corporation.

DESBORDES, Françoise (1990) Idées Romaines sur 'Ecriture. France: Presses Universitaires de Lille.

FERREIRO, Emilia (1991) L'uso della punteggiatura nella scritura di storie di bambini di seconda e terza elementare. In: M. ORSOLINI & C. PONTECORVO (eds.) Florença: La Nuova Italia.

HALLIDAY, M. A. K. (1989) Spoken and Written Language. England: Oxford University Press.

HARTWELL, Patrick and BENTLEY, Robert H. (1982) Open to Language - A New College Rhetoric. New York: Oxford University Press.

LAUFER, Roger (février 1980:77-87) Du Ponctuel au Scriptural (Signes d'énoncé et marques d`énonciation). In: Langue Française 45. Paris: Larousse.

MATTOS e SILVA, Rosa Virgínia (1992) O que nos diz sobre a sintaxe a pontuação de manuscritos medievais portugueses. In: Reunião Anual da ABRALIN - Mesa Redonda: Sintaxe e Pontuação (mimeog.), 13 p.

NUNBERG, Geoffrey (1990) The Linguistics of Punctuation. United States: CSLI (Center for the Study or Language and Information).

PERROT, Jean (février 1980) Ponctuation et Fonctions Linguistiques. In: Langue Française 45: 67-76. Paris: Larousse.

SMITH, Frank (1982) Writing and the Writer. New York: Holt Rinehart and Winston.

SIMONE, Raffaele (1991:219-232) Riflessioni sulla virgola. In: ORSOLINI, Margherita e PONTECORVO, Clotilde (ed.) La Costruzione Del Testo Scritto Nei Bambini. Florença: La Nuova Itália.

TEMPLE, Charles A. et alii (1982:37-41) Linear Principles and Principles of Page Arrangement. In: The Beginnings of Writing. Boston: Allyn and Bacon Inc.

TOURNIER, Claude (février 1980) Historie des idées sur la ponctuation - des débuts de l'imprimerie à nos jours. In: Langue Française 45: 28-40. Paris: Larousse.

  • CUNHA, Celso (1981) Gramática de Base Rio de Janeiro: Fename.
  • DANIELEWICZ, Jane and CHAFE, Wallace (1985:213-26) How 'normal' speaking leads to 'erroneous' punctuating. In: FREEDMAN, Sarah Warshauer (ed.) The Acquisition of Written Language: Response and Revision. Berkeley: University of California, Norwood/New Jersey: Ablex Publishing Corporation.
  • FERREIRO, Emilia (1991) L'uso della punteggiatura nella scritura di storie di bambini di seconda e terza elementare. In: M. ORSOLINI & C. PONTECORVO (eds.) Florença: La Nuova Italia.
  • HALLIDAY, M. A. K. (1989) Spoken and Written Language. England: Oxford University Press.
  • *
    Esta retrospectiva compõe parte do capítulo teórico da Tese de Doutorado "Aquisição da Pontuação: Usos e Saberes de Crianças na Escrita de Narrativas", defendida na PUC/SP em 1994.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Dez 1998
    • Data do Fascículo
      Fev 1997

    Histórico

    • Aceito
      19 Jan 1996
    • Recebido
      07 Ago 1995
    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: delta@pucsp.br