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Língua de sinais e língua majoritária como produto de trabalho discursivo

Sign language and majority language as work of discourse

Resumos

O presente estudo tem como objetivo problematizar a práxis pedagógica de ensino bilíngüe para surdos com base na concepção bakhtiniana de linguagem. Assumir tal perspectiva é pressupor a construção da subjetividade como resultado de um processo no qual o "outro" possui papel ativo e constitutivo. No processo de construção dialética do objeto lingüístico o sujeito entra no fluxo dinâmico de uma cadeia de enunciados já tecidos histórica e socialmente. Minha contribuição nesta apresentação busca resgatar o papel desse "outro" no processo recíproco de ensino e aprendizagem da criança surda, no contexto de seu trabalho com duas línguas: a de sinais e o português.

dialogia; ensino de língua; aluno surdo


Assuming Bakhtin's conception of language, this paper discusses the educational praxis of language teaching to deaf students. The construction of subjectivity is considered by the author as a product of dialogical and dialectic work in which the "other" has an essential co-author status. During the process of language construction, the subject takes part of a rich network of enunciations which are always historically and socially determined. My goal in this study is to focus on the linguistic co-partnership of this "other" in the reciprocal process of teaching and/or learning two different languages, Sign Language and Portuguese, by Deaf students.


Língua de sinais e língua majoritária como produto de trabalho discursivo

Regina Maria de Souza** Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação Prof. Gabriel Porto - Faculdade de Ciências Médicas - Unicamp. Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação Prof. Gabriel Porto - Faculdade de Ciências Médicas - Unicamp.

Resumo: O presente estudo tem como objetivo problematizar a práxis pedagógica de ensino bilíngüe para surdos com base na concepção bakhtiniana de linguagem. Assumir tal perspectiva é pressupor a construção da subjetividade como resultado de um processo no qual o "outro" possui papel ativo e constitutivo. No processo de construção dialética do objeto lingüístico o sujeito entra no fluxo dinâmico de uma cadeia de enunciados já tecidos histórica e socialmente. Minha contribuição nesta apresentação busca resgatar o papel desse "outro" no processo recíproco de ensino e aprendizagem da criança surda, no contexto de seu trabalho com duas línguas: a de sinais e o português.

Palavras-chave: dialogia, ensino de língua, aluno surdo

Esta reflexão terá como objetivo problematizar a constituição do sujeito pela linguagem, no contexto atual das discussões relativas à implantação de um ensino bilíngüe para surdos, tema sobre o qual se tem discutido muito nos últimos anos. Como sabemos, na proposta bilíngüe a língua brasileira de sinais (Libras) seria introduzida como primeira língua (L1) e o português como segunda (L2).

Os argumentos utilizados em favor da introdução, o mais cedo possível, da Libras no programa escolar são, igualmente, bem conhecidos. Aponta-se:

1) Para a existência de um "período crucial" para a aquisição da linguagem que, supostamente, abrangeria os primeiros anos de vida. Como o acesso aos sinais não é limitado por nenhum entrave biológico, o que não ocorre com a fala, a exposição à Libras garantiria à criança surda a possibilidade de adquirir linguagem nos estreitos limites desse "período crucial" (Rodrigues 1993, Luján 1993).

2) Para a existência de uma competência inata, pressuposto e núcleo duro do paradigma inatista. Segundo essa perspectiva, o sujeito é concebido como detentor, por características biológicas de sua espécie, dos princípios gerais de uma gramática universal. Dessa forma, bastar-lhe-ia, para aprender uma língua, estar imerso numa comunidade lingüística e receber dela "inputs lingüísticos cruciais". Dito de outro modo, a competência lingüística do sujeito seria ativada a partir de sua exposição a um número reduzido de dados lingüísticos; em decorrência, a língua emergiria de seu interior como conseqüência de um funcionamento cognitivo-biológico autônomo (veja mais sobre o assunto em Chomsky 1977).

Essas duas linhas argumentativas, apesar de se buscarem em áreas de saber diversas (neurologia e lingüística, respectivamente), solidarizam-se quando o objetivo é defender a língua de sinais como L1. Uma vez que a grande maioria das pesquisas sobre a sintaxe das diferentes línguas de sinais é realizada por autores inatistas, esses dois argumentos são os mais utilizados na sustentação de uma proposta bilíngüe para surdos.

Exposto à Libras, desde o início de sua vida, o sujeito surdo teria, assim, garantido seu direito a uma língua de fato. A partir dela, o ensino do português (L2) seria facilitado pela garantia de um funcionamento simbólico-cognitivo já ocorrendo de modo satisfatório. Apresso-me a explicitar aqui que também defendo a Libras como L1 e o português como L2. Fazer essa defesa já foi tema de um outro trabalho meu (Souza 1996), no qual dirigi esforços na argumentação da importância do acesso à Libras pela relevância que adquire no processo de construção da identidade da pessoa surda em todos os seus aspectos, a saber, lingüístico, cognitivo e social. Na reflexão que ora inicio, aprofundarei minhas reflexões sobre a indissociabilidade que se instaura entre "língua" e "sujeito". Minhas argumentações, aqui, procurarão enfatizar o fato de que "ensinar" uma língua é mais do que expor a criança a dados lingüísticos; muito além disso, é um processo de (re)organização constante e dinâmica do "eu" e do "outro". Desse modo, em vez de inscrever a língua no plano biológico (porque mental) vou situá-la no espaço dialógico (porque social). Para tanto elegerei Bakhtin (1992a) como interlocutor teórico.

Para Bakhtin (1992a), a "verdadeira substância" da língua não está nem no sistema abstrato das formas lingüísticas (no universo lexical, nos fonemas, nos morfemas, nas flexões etc.) nem está alojada no psiquismo individual de cada pessoa. Sua essência não é nem o ato psicofisiológico que a produz nem a enunciação monológica. A "verdadeira substância" da língua é, por excelência, o ato dialógico em seu acontecimento concreto. Entretanto, qualquer diálogo, além de ser ele próprio histórica e socialmente determinado, evidencia uma outra história: a história da própria linguagem. Afirmar que a linguagem oculta e explicita uma história supõe admitir a existência de regularidades, cristalizações de formas e de certas fórmulas discursivas, de significados e de regras formacionais. Para Bakhtin, a história de qualquer língua tem o mesmo núcleo gerador de um enunciado particular, isto é, tem seu início na "faísca" produzida pelas interações sociais. Dito de outro modo, a língua é produto do trabalho coletivo e ininterrupto de sujeitos socialmente organizados, cujo processo instaura a construção, também coletiva, de conhecimentos e saberes sobre o mundo. Homem e linguagem não são, assim, categorias estranhas uma à outra.

Homem e linguagem são produtos um do outro, se pertencem. Como produto humano, a linguagem guarda a história das relações sociais, traz a lembrança das oposições de classes, "constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças", e por isso "é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais" (idem, p. 41).

Todavia, se a linguagem é marcada pela história, se há sistematicidades, isso não quer dizer que o fenômeno lingüístico se reduz a elas. Ao defender essa idéia, Bakhtin distancia-se do objetivismo abstrato.

Para o objetivismo, o que faz da língua objeto de estudo é seu sistema de formas (fonéticas, gramaticais, lexicais), uma vez que, segundo postula essa abordagem, são os traços idênticos, normativos para qualquer enunciação, que garantem a unicidade de uma língua dada e a possibilidade de estudá-la. Segundo o objetivismo, as leis que a regem são imanentes do próprio sistema lingüístico e, portanto, completamente independentes das leis ideológicas. A língua, nessa perspectiva, é concebida como uma instituição social que, como tal, é normativa para o indivíduo, a quem cabe, apenas, aprendê-la.

Na base dos métodos de reflexão que levam à postulação da língua como sistema de formas normativas, estão os procedimentos práticos e técnicos elaborados para o estudo das línguas mortas, que se conservaram em documentos escritos. (Idem, p. 96)

Essa forma de abordar a língua afetou também a práxis pedagógica que seguiu os mesmos passos dos formalistas. Considere-se, por exemplo, que o ensino escolar tende a reduzir a língua ao léxico e à gramática. O "enriquecimento do vocabulário", quer dizer, os significados cristalizados ou de dicionário das palavras, passa a ser uma meta pedagógica em si mesma na tentativa de o professor garantir, por parte do aluno, a compreensão do texto. Por outro lado, a sintaxe é desvinculada do discurso: não há problematização, com o aluno, das transformações que as formas da língua sofrem no ato da enunciação. A língua é, pois, fracionada. Seu funcionamento é reduzido a regras que, por sua vez, são transmitidas aos alunos para que as memorizem.

Yara, uma surda que nos concedeu ricos depoimentos, é um exemplo do produto de uma tal prática escolar. Impossibilitada de ter acesso "natural" à língua oral (pela ausência da audição), foi-lhe imputado um ensino de língua portuguesa circunstanciado na memorização e na automatização de regras gramaticais, com o pretenso objetivo de fazê-la aprender o português. É interessante notar que esse era o modo adotado tanto pela escola regular como pela escola especial, freqüentadas por ela de modo paralelo e simultâneo. Como não conseguia se valer nem das regras nem das palavras que, não obstante, havia decorado e cujos significados havia aprendido a identificar, não conseguia ocupar o lugar de enunciadora. Era solitária, não possuía amigos:

eu era oralizada mas não tinha aquele vocabulário, por exemplo, tinha muito vocabulário mas não sabia conversar, não sabia comunicar ( ), parece meio frio, igual papagaio, ( ) saber falar mas não saber conversar, então, eu repetia tudo. ( ) Só sabia imitar mas não entendia profundamente o que eles estavam falando. (Yara)

No caso da pessoa surda, fracionar a língua, oferecê-la por partes aos alunos de modo esquematizado, pasteurizado e asséptico, como se fosse possível "ensinar" uma língua da mesma forma que um cirurgião separa órgãos, é também conveniente à escola. Conveniente porque, pareadas e confundidas com ilustrações de murais ou convertidas em objeto de técnicas de associação, as palavras e as regras são transformadas em coisas passíveis de ser transmitidas fora da linguagem. Dito de outro modo, a percepção, a visão, o tato, o olfato etc. passam a ser os canais de "transmissão" da "língua", já que o aluno não ouve. Há aí uma certa contradição: o professor fala embora saiba que não possa ser ouvido. Fala porque a fala é parte de si próprio, indissociada de sua identidade, do exercício de seu papel. Parte de alguém que "aprendeu", nos bancos de cursos universitários, que seus futuros alunos deveriam ser tratados todos iguais (mas a quem?) mesmo que soubesse que não fossem. Diante da criança surda, percebe-se de imediato impotente: como ensinar, se falar não pode ser mais o "meio"? Como "ensinar" sem linguagem? A única "saída" que imagina ter é a redução de seu ato de "ensinar" à estimulação dos canais sensoriais remanescentes como via de acesso à linguagem. Mas que linguagem seria possível brotar de cada mente em particular em tal contexto de "ensino"?

Rosângela, surda, aproximadamente 25 anos, resolveu sair da escola quando estava na 3ª série. Atualmente produz e distribui chaveiros para serem vendidos por outros surdos. Quando explica por que saiu da escola sinaliza (tradução para o português feita por mim): "Por quê? Eu não sou palhaça, não! A professora só dava papel para copiar, desenhar, copiar palavra, copiar frase. Não conversava com a gente, ela ficava só lendo as revistas dela. Eu não aprendia nada, perdia tempo. Saí, não sou palhaça!"

Por que uma prática centrada no vocabulário, em técnicas mecânicas de memorização de regras, de segmentação de texto e de palavras, aliada a operações combinatórias de sílabas, não funciona? Retornemos a Bakhtin.

Bakhtin opta por um percurso diferente daquele proposto pela tradição formalista; isto é, em vez de privilegiar a língua toma como objeto de análise a heterogeneidade da fala, vale dizer, a complexidade dos múltiplos modos de ocorrência da linguagem que engendram sentidos novos e não reproduzíveis. Esses múltiplos modos de ocorrência são, na verdade, um efeito da "faísca" desencadeadora da linguagem: a interação verbal. Os elementos principais de qualquer interação são: presença de um locutor, de um interlocutor (real, suposto ou virtual), uma situação social dada, um contexto historicamente determinado, o objeto de discurso e o desejo pela palavra. Como esses elementos variam sempre, na totalidade ou em partes, cada ato enunciativo é um ato único de transformação das formas da linguagem. De fato, qualquer mudança no processo, que o uso efetivo da linguagem instaura, acarreta uma produção de novos sentidos.

Por esse caráter dinâmico é que é impossível tomar a significação como um elemento à parte do signo, independente da situação particular e do trabalho de cada personagem que tece o discurso. Imerso no fluxo comunicativo, o locutor não trata a língua como sistema imutável. Para ele, não se trata de agir de acordo com uma norma externa e coercitiva, mas de produzir e compreender as novas significações que uma mesma forma adquire no contexto. Quanto ao interlocutor, seu ato de compreensão não se reduz a um ato mecânico de decodificação, pelo reconhecimento, de uma forma lingüística dada: esse é o "método" utilizado apenas por alguém quando diante de uma língua estrangeira ou que pouco conhece. Para aquele que acompanha atento o enunciado alheio o que de fato interessa é a compreensão da novidade que o signo lingüístico adquire numa situação discursiva particular, e não a avaliação de sua adequação à norma padrão (Bakhtin 1992a).

Assim sendo, locutor e interlocutor operam com a linguagem como fornecedora de possibilidades expressivas, cujos significados são móveis e cujos sentidos nunca se repetem, porque determinados no contexto de uma situação discursiva única. Daí por que é inócuo o ensino da língua fundado na identificação mecânica de significados, na exploração exaustiva do léxico e na memorização de regras gramaticais. A língua é matéria viva tanto para o locutor como para o interlocutor. São as novidades sulcadas em cada forma, ainda que a mesma, em atos enunciativos particulares, que interessam e movem a enunciação de ambos.

Mas há de se considerar também que o locutor não é um Adão que pela primeira vez rompe com o silêncio de um mundo mudo (Bakhtin 1992b). De fato, cada enunciado é mais "um elo na cadeia da comunicação verbal" (p. 308).

Os enunciados não são, pois, indiferentes uns aos outros: entre eles se ocultam relações dialógicas inter e intratextuais. Refletem-se ou refratam-se mutuamente. Cada um deles guarda a memória e os ecos de outros enunciados, aos quais se vincula. Acima de tudo é uma réplica, uma resposta a eles: refuta-os, conta com eles, supõem-nos como já sabido, concorda com eles, transforma-os. De tal perspectiva, todo aquele que enuncia ocupa, segundo Geraldi (1993), dois papéis simultaneamente: o daquele que tece a réplica ao enunciado que responde e o daquele que, ao fazê-lo, coloca-se na perspectiva do outro, na tentativa de, ao presumir-lhe a resposta, restringir-lhe as possibilidades de oposição, conquistar-lhe como aliado etc. Por outro lado, o outro não é um ouvinte ou leitor passivo. Espera-se dele uma resposta, e é a essa resposta que o locutor se dirige. Sem ser considerada a natureza dinâmica e dialética da relação "locutor-interlocutor" não se pode realizar análises lingüísticas nem sobre o gênero, nem sobre o estilo do discurso, nem sobre sua função na cadeia de enunciados sobre o objeto temático.

O objeto de discurso não é, pois, neutro, uma vez que já sofreu várias transformações pela linguagem, em outras palavras, foi objeto de outros enunciados. Assim concebido, "um enunciado é sulcado pela ressonância longínqua e quase inaudível da alternância dos sujeitos falantes e pelos matizes dialógicos, pelas fronteiras extremamente tênues entre os enunciados ( )" (Bakhtin 1992b, p. 318).

O sujeito se constitui com o outro pela linguagem. Entretanto, o processo de construção de sua identidade não é nem linear nem passível de ser explicado de uma perspectiva teleológica. Esse processo é dialético por excelência, composto de fluxos e refluxos, de idas e vindas, de tomadas e retomadas de pontos de vista alheios, de valores etc. Pressupor um "desenvolvimento linear do sujeito" demandaria que fosse postulada a imagem do "outro" como construtor absoluto do "eu", desprovida de conflitos, sem história ou marcas ideológicas. Um "outro" poderoso, detentor de um saber que apenas transferiria à criança, ao aluno etc. Seria pressupô-lo como uma entidade epistêmica, o que equivaleria situá-lo no plano da ficção psicológica. Pelo contrário, o outro é marcado pelo eco das vozes de muitos outros; ecos que fazem ressoar visões de mundo contraditórias porque contraditórios são os interesses das classes sociais e os conhecimentos sobre o mundo que constroem. O outro é um ser em conflito, em permanente tensão com todas as vozes que o constituíram.

O eu está imerso no fluxo dessas contradições e se constitui com elas. Mas não de modo passivo ou solitário, como se o processo de individualização se restringisse ao ato de apropriação de conhecimentos já postos. É pela pluridimensionalidade desse processo, pela presença simbolicamente marcada de todas as vozes alheias que o tecem, que o sujeito se constitui como ser multifacetado ou possuidor de várias máscaras. E é pela/na ebulição das vozes que essas máscaras fazem ecoar — ao longo da história do sujeito — que elas, transformadas, se monologizam.

Marcado por múltiplas vozes, o enunciado é polifônico por natureza. Entretanto, a polifonia não faz parte de uma língua concebida como um sistema autônomo de formas e leis autóctones. Ao contrário, em Bakhtin (1992a), o enunciado, e não a oração, é a unidade da dialogia, e ela, por sua vez, é o centro (re)construtor da língua.

Como diz Brait (1994,p. 15), para Bakhtin

tudo que é dito, tudo que é expresso por um falante, por um enunciador, não pertence só a ele. Em todo discurso são percebidas vozes, às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais, quase imperceptíveis, assim como as vozes próximas que ecoam simultaneamente no momento da fala. (Grifo do autor)

Adotar essa concepção de linguagem implica ter que se desmanchar a tricotomia langue-parole-langage. Pressupõe também que seja reconsiderada a clássica dicotomia língua-discurso. A decorrência para a prática de "ensino" de língua, seja da L1 como da L2, quaisquer que sejam, é que o processo de construção do objeto lingüístico não pode e não deve ser reduzido à pura exposição das formas da língua, a um ensino descontextualizado, desvinculado da historicidade da relação professor-aluno, como se a língua pudesse ser reduzida à assimilação passiva de um sujeito em condição biológica para fazê-lo. Eis por que, apesar da obrigatoriedade do ensino básico, a cada ano a escola vem produzindo uma população de indivíduos que, apesar de falarem uma língua, fracassam na compreensão da escrita e, em conseqüência, interrompem seu percurso escolar ainda no 1º grau. Todo movimento da práxis pedagógica converte-se, assim, num mecanismo de "produção" de estudantes que não aprendem, apesar de os discursos idealistas, tecidos no seio da instituição de ensino, defenderem tese contrária.

Meu receio, e aqui devemos aproveitar a lição do propalado fracasso do sistema de ensino comum, é que acabemos por reproduzir, na formulação de um programa de ensino bilíngüe para surdos, os mesmos erros cometidos no "ensino" de língua escrita à criança ouvinte. De fato, ao convertermos a Libras (e o português) em um conjunto de orações e regras; ao postularmos que sua aquisição se reduz à presença de um usuário surdo fluente em sinais — cujo papel seria, basicamente, o de oferecer dados lingüísticos a alunos surdos — não estaríamos convertendo a Libras, como foi feito com o português escrito, em língua morta? Em uma língua "fria", sem qualquer utilidade para os sujeitos, sem papel nenhum para a construção de sua identidade?

Se Yara, a surda cuja voz fiz ecoar linhas acima, pôde entrar no fluxo vivo do português foi porque ela se (re)construiu sujeito, aos 16 anos, pela Libras, língua que fundava as relações de outros surdos na comunidade surda que começou a freqüentar. Mas a linguagem de sinais não se apresentou a ela de modo transparente e sem mediação: "fiquei emocionada mas não entendia nada".

Ao contrário, para que tivesse acesso àquela linguagem, Yara precisou ter recebido do grupo de surdos um lugar no discurso e se valido dele para conquistar sua própria argumentação, seu próprio discurso: "Aprendi a conversar também e aí aprender no mundo social dos ouvintes melhorou muito por causa o que aprendi com os surdos a se comunicar".

Foi no dinamismo, ou no movimento dialético que a dialogia funda, que o mundo fez sentido para ela, não só o mundo externo mas aquele seu, interno; produto social, sua consciência se organizou: "Ter minha própria personalidade, que foi para fora e não era mais a imitação dos ouvintes."

Como nos diria Bakhtin (1992a, p. 33), porque um signo só pode se contrapor a outro signo, "a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos".

Signos exteriores incapazes de penetrar no contexto dos signos interiores tornam-se matéria física impossível de ser compreendida. Porque os signos sinalizados não foram, para Yara, matéria morta, ou um mero produto de assimilação passiva, é que puderam conferir sentido aos signos do português. Pela Libras, o português pôde se converter em matéria viva e significativa. Mas, vale repetir: se Yara construiu objetos lingüísticos, não foi memorizando e relacionando, metódica e sistematicamente, palavras e regras de formação. Foi porque o outro, ou o grupo de surdos, lhe conferiu lugar discursivo, interpretou para ela o mundo, demandou-lhe réplicas, inscreveu-a no simbólico pela língua de sinais, que lhe permitiu, devido à dialética que tal processo instaura, simbolizar a si própria, ao mundo e ao outro.

Em síntese, chamo a atenção para a importância crucial do professor, seja surdo ou ouvinte, como personagem integrante e ativo do processo de construção da linguagem pela criança surda. Mais do que isso: procurei caracterizar seu papel como sendo de co-autoria na formação da individualidade da pessoa surda. E, aí, abre-se espaço para que seja mais bem aprofundada a relação entre ideologia, identidade e ensino, tema que deixo para uma outra reflexão. Ou, quem sabe, possa tal assunto se oferecer como objeto sedutor de apropriação legítima por um leitor que tiver tido a paciência de ter chegado até aqui.

Sign language and majority language as work of discourse

Abstract: Assuming Bakhtin's conception of language, this paper discusses the educational praxis of language teaching to deaf students. The construction of subjectivity is considered by the author as a product of dialogical and dialectic work in which the "other" has an essential co-author status. During the process of language construction, the subject takes part of a rich network of enunciations which are always historically and socially determined.

My goal in this study is to focus on the linguistic co-partnership of this "other" in the reciprocal process of teaching and/or learning two different languages, Sign Language and Portuguese, by Deaf students.

Bibliografia

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  • * Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação Prof. Gabriel Porto - Faculdade de Ciências Médicas - Unicamp.
    Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação Prof. Gabriel Porto - Faculdade de Ciências Médicas - Unicamp.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Dez 2001
    • Data do Fascículo
      Set 1998
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