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A importância da necropsia em medicina veterinária

A importância da necropsia em medicina veterinária

No meio veterinário, há muito a necropsia vem sendo negligenciada, o que é lamentável, já que a sua prática é fundamental para confirmação ou correção do diagnóstico. Por vezes, a necropsia é a única forma de se chegar ao diagnóstico correto. Dessa forma, é imprescindível que modifiquemos esse estado de coisas, para que a Veterinária, como um todo, atinja maior qualificação. São abordados alguns tópicos básicos, porém importantes, relativos ao assunto.

A SITUAÇÃO

A não-realização de necropsias, quando da ocorrência de um surto ou de mortes isoladas em animais de fazenda, resulta em "falatório" difuso sobre as possíveis causas da doença, recheado de informações inexatas, equivocadas ou, mesmo, de crendices. Citando parte do adágio popular, "todo mundo fala e ninguém tem razão". Diversos veterinários emitem opiniões, em geral discrepantes, confundindo o proprietário. Em decorrência, não há como se tomarem medidas objetivas de tratamento e profilaxia. Muitas vezes, somados ao prejuízo pela morte dos animais, o proprietário ainda irá dispender recursos em tratamentos desnecessários, porque baseados em diagnósticos errados.

Nas Universidades, a situação nem sempre é melhor. É comum, em vários Institutos de Veterinária do país, a prática da incineração dos cadáveres de animais oriundos dos Hospitais de Grandes ou de Pequenos Animais, não-submetidos à necropsia.

O PORQUÊ DA NECROPSIA

Em termos simples, porque a necropsia pode confirmar, refutar, esclarecer, modificar ou estabelecer o diagnóstico. Numerosos erros de diagnóstico podem ser evitados ou corrigidos se a necropsia for realizada. Os exemplos abaixo mencionados foram transcritos do editorial de Junho de 1968, da Revista da Associação Americana de Medicina Veterinária.

"O exame clínico de um equino indicou que o animal apresentava abscesso cerebral, encefalite ou neoplasia; a necropsia revelou ependimite supurativa causada por Staphylococcus aureus (JAVMA, Jan. 1968). Uma condição diagnosticada clinicamente como insuficiência circulatória hipovolêmica com acidose metabólica em uma vaca, revelou-se através da necropsia, como insuficiência da glândula pituitária (JAVMA, Jan. 1968, p. 17-24). A cegueira de um cavalo jovem que ao exame clínico sugeriu apenas uma lesão cerebral revelou, à necropsia, ser causada por abscessos relacionados ao garrotilho (JAVMA, Fev. 1967, p. 286-295). Num estudo de 14 cães com carcinoma de pâncreas, o diagnóstico clínico correto foi estabelecido em apenas um deles (JAVMA, Fev. 1967, p. 286-295). Uma morte atribuída à obstrução intestinal causada por adenocarcinoma de íleo em um gato, na necropsia revelou-se como um caso de panleucopenia felina (JAVMA, Abril 1968, p. 1017-1022)."

Numerosos outros exemplos poderiam ser aqui citados. De qualquer modo, esses equívocos de diagnóstico poderiam ser, pelo menos, muito diminuídos em número, se mais necropsias fossem feitas.

O exame post-mortem constitui o melhor meio de comparação dos sinais clínicos do animal enfermo, com lesões que não eram visíveis ou aparentes durante a vida. A falta de reconhecimento dos próprios erros leva, obviamente, a sua repetição. Clínicos que fazem ou acompanham necropsias de seus casos, melhoram significativamente sua capacidade profissional, pois essa prática permite a verificação de eventuais erros, ou confirmação do diagnóstico, além de uma melhor compreensão dos processos patológicos.

O exame necroscópico permite ainda, uma maior abrangência na coleta de material para exames virológicos, bacteriológicos, parasitológicos e toxicológicos, afora de ser praticamente a melhor forma de acesso a órgãos para confecção de " imprints" ou esfregaços de tecidos, ou, por vezes, o único meio para se diagnosticarem certas doenças (por ex., a babesiose cerebral). Nesse ponto, abrimos um parêntese que julgamos essencial. É de suma importância que nos conscientizemos que a prática comum de "cortar a cabeça" do animal e enviá-la ao laboratório para o diagnóstico de raiva não se justifica de forma alguma. Dadas a frequência e a importância da raiva bovina em nosso meio e, talvez, pelo medo que ela induz, essa doença é o depositório maior das suspeitas dos colegas que trabalham no campo. Todavia a prática acima mencionada, em geral, só permite o diagnóstico dessa doença, de vez que a imunofluorescência, na maioria dos nossos laboratórios, só vem sendo empregada para a raiva. Assim sendo, o diagnóstico de quaisquer doenças do sistema nervoso central, ou de outros sistemas, torna-se impraticável. Quando parte do encéfalo é remetida ao patologista, ainda há possibilidade de diagnóstico de outras doenças do sistema nervoso, mas para enfermidades de outros sistemas, o diagnóstico fica inviável.

PROBLEMAS RELATIVOS À NECROPSIA

Provavelmente, a principal causa de a necropsia ser negligenciada seja o medo de contaminação; com relação ao bovino são temidos, sobretudo, o carbúnculo hemático e a raiva. No que se refere à raiva bovina, medidas simples como a utilização de luvas e cuidado no manuseio com os tecidos, impedem a infecção (ver Tópico de Interesse Geral "A raiva bovina e linhas de conduta", Pesq. Vet. Bras. 18(1):45-46, 1998). Com relação ao carbúnculo hemático, doença rara no Brasil, preconizava-se que os animais suspeitos de serem afetados por essa doença não deveriam ser necropsiados. A conduta correta, entretanto, consiste em proceder a necropsia com cuidado, evitando o contato direto com os tecidos do cadáver, e coletar material para exames bacterioscópico (esfregaço de baço ou sangue), bacteriológico e histopatológico; logo após, em se constatando lesões macroscópicas sugestivas da doença em questão, deve-se incinerar o cadáver para evitar a esporulação e disseminação de B. anthracis no local (ver Tópico de Interesse Geral "Ocorrência de carbúnculo hemático em animais no Brasil", Pesq. Vet. Bras. 14(4):135-136, 1994). Outra causa alegada é a falta de material para a execução da necropsia e de fixador para tecidos. No entanto, o material necessário não custa mais de R$ 30. A alegação de que "não sabe fazer necropsia" também não procede, já que basta ao veterinário "abrir" as cavidades torácica e abdominal, examinar todos os órgãos e coletar dois ou três fragmentos de cada um, inclusive encéfalo.

MÉTODOS DE NECROPSIA

Há diversos métodos de necropsia, todos com vantagens e desvantagens que não cabem aqui ser discutidas. Ao nosso ver, mais importante que a escolha do método, é o exame cuidadoso de todos os órgãos e a coleta adequada de seus fragmentos, inclusive o sistema nervoso central. A coleta de material de encéfalo e de porções da medula espinhal não apresenta grande dificuldade, basta que tenhamos uma serra ou uma machadinha, pinça, tesoura, faca e boa vontade; aliás esse material é suficiente para toda a necropsia.

Isso posto, o veterinário deve escolher um dos métodos de necropsia, independentemente de qual seja, e praticá-lo sempre na mesma sequência para que se habitue a não esquecer nenhum órgão.

FENÔMENOS AUTOLÍTICOS

A autólise post mortem é um sério problema para o diagnóstico, por isso a necropsia deve ser feita o mais breve possível depois da morte do animal. Esse fenômeno mascara lesões ou induz o veterinário a interpretações errôneas. Dessa forma, embebição hemoglobínica é frequentemente descrita como "hemorragias generalizadas" ou "órgãos hemorrágicos". Manchas cadavéricas, especialmente as do fígado, são confundidas com áreas de necrose. Ruptura e deslocamento post mortem de órgãos não são reconhecidos como tal e até mesmo embebição biliar, por vezes, é interpretada como icterícia. A saída de líquido avermelhado pelas narinas é tomada por hemorragia e o animal passa a ser suspeito de carbúnculo hemático! O pseudotimpanismo e o desprendimento das porções superficiais da mucosa dos pré-estômagos são muito importantes, porque, com muita frequência, têm sido tomados como confirmação de que o animal tenha se intoxicado por plantas, interferência essa, sem dúvida, equivocada.

Fica evidente, pelo acima citado, que essas má-interpretações desviam o veterinário do raciocínio correto para o diagnóstico e que, portanto, é fundamental que sejam conhecidas.

PROBLEMAS RELATIVOS À COLETA, À FIXAÇÃO E À REMESSA DE MATERIAL

Em caso de o veterinário incumbido de esclarecer a causa mortis ainda não possuir suficiente experiência de necropsia e de coleta de material, o ideal é que ele envie o cadáver do animal para o patologista, o mais rápido possível. Em alguns casos, dependendo das instalações do Laboratório ou do Serviço de Diagnóstico, é aconselhável, até, que seja enviado o animal enfermo ainda vivo, o que permite observações clínicas e a garantia de que a necropsia será realizada logo após a morte. Infelizmente, isto não é possível, na maioria das vezes, de maneira que o veterinário deverá estar atento, durante a necropsia, para alguns aspectos abordados a seguir.

Devem ser coletados, pelo menos, fragmentos dos principais órgãos: fígado, rins, pulmões, coração, baço, além do sistema nervoso central e de diversas porções do tubo digestivo; outros órgãos ou tecidos como adrenal, pâncreas, ovário, útero, bexiga, próstata, paratireóide, hipófise, pele, linfonodos, músculos, olho e trato respiratório superior devem ser coletados na dependência do histórico e dos sinais clínicos. Em muitas ocasiões, não é possível chegar-se ao diagnóstico pelo exame de apenas dois ou três órgãos que, inclusive, podem não estar afetados, no caso. Animais que apresentaram sinais de afecção do sistema nervoso devem ter, necessariamente, o encéfalo e fragmentos de medula espinhal coletados; o mesmo é válido para aqueles casos em que o clínico não tem qualquer suspeita sobre a causa da doença ou para aqueles cuja sintomatologia não pode ser acompanhada. Os fragmentos devem medir aproximadamente 2x3x0,5 cm; metade do encéfalo deve ser fixado inteiro em quantidade suficiente de fixador e a outra metade refrigerada ou congelada para eventuais exames microbiológicos.

A fixação, via de regra, deve ser feita com formalina a 10%, já que é um meio de fixação eficiente, barato e disponível no mercado. É muito importante que se observe a proporção de 10 partes da formalina a 10% para cada parte do tecido a ser fixado. Laboratórios ou Serviços de Diagnóstico em Patologia Veterinária, por vezes, recebem tecidos em diversos meios totalmente inadequados para o processamento de rotina, como é o caso do álcool etílico, álcool metílico, lisofórmio e até aguardente. Obviamente estes meios não se prestam para a fixação. O congelamento do material destinado ao exame histológico deve ser evitado, pois produz artefatos que dificultam o exame.

O material a ser enviado ao laboratório deve ser, de preferência, fixado antes de ser remetido. Pequenos fragmentos fixam em um ou dois dias, enquanto que para o hemiencéfalo são necessários de 4 a 7 dias, de acordo com o seu tamanho. Após a fixação, o material pode ser enviado em vidros ou recipientes plásticos com formalina a 10%, desde que sejam totalmente vedados e bem acondicionados para não quebrarem. Vazamentos podem inutilizar o material e causar problemas para os funcionários dos correios que o manuseiam. Um método alternativo e mais barato consiste na redução dos fragmentos coletados a uma espessura de 2 ou 3 mm, mantendo-se, entretanto, as outras medidas; depois de fixados, estes fragmentos são acondicionados entre duas espessas camadas de algodão embebidas no fixador. Esse material é, então, colocado em sacos plásticos fortes, hermeticamente fechados e colocados em envelope para remessa.

De nossa experiência, os clínicos mais qualificados, tanto de grandes como de pequenos animais, são aqueles que fazem ou acompanham a necropsia dos animais por eles tratados.

Paulo Vargas Peixoto

Cláudio S. L. Barros

Departamento de Epidemiologia e Saúde Pública

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

23890-000 Seropédica, Rio de Janeiro

Departamento de Patologia

Universidade Federal de Santa Maria

97119-900 Santa Maria, Rio Grande do Sul

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 1999
  • Data do Fascículo
    Jul 1998
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